CONTO CLASSIFICADO EM 3º LUGAR , NO III CONCURSO DE CONTOS DE LINS-SP, 2020
DIÁLOGO ENTRE DUAS RAZÕES
João, como tantos Joões, foi para cidade grande. Lá
viveria suas razões – como dizia seu
finado avô – quando o rapazinho deixou a roça. O moço passou por experiências
que jamais conheceria se não tivesse saído de lá, de Lins. Morador de república, colchão fino, cobertor
ralo, sopa fraca, dores, frustrações e saudade foram a base do seu
desenvolvimento. Também conheceu a farra, a bebedeira, as moças fogosas e
decepcionou-se com amigos traidores. Suportou a solidão. Muitas vezes pensou em
desistir. Mas não podia! Estudou com
afinco para honrar o suor que a família produzia nas lavouras de café, para
estudá-lo. Não andarilhou sobre seus resultados.
Com diploma e consultório formado, João entende de
tudo um pouco. Mas sua especialidade é tratar os corações, dos outros. E por
mais que se tente resumir a história de um homem ela acaba sempre mal narrada,
porque é só mesmo o dono da história que sabe da sua verdade. E nessas
histórias de coração é bom que se tome tento, porque há uns que mais apanham
por fora do que batem por dentro.
Hoje, um
paciente – um molecote – sem pedir
licença, adentrou o consultório do João, querendo ser consultado. Num misto de sensações e o coração acelerado,
sem saber se ria ou chorava, o doutor levou o dedo indicador sobre o nariz e
empurrou seus óculos, sempre caídos, para perto de seus olhos. Podendo enxergar
melhor, de repente viu-se saindo de si, parindo um tempo cheirando à placenta
da lembrança.
Olhou num
gesto sonhado aquele menino que há muito acomodou no esquecimento e o garoto,
olhando nos olhos do médico, mostrou um sorriso meio banguelo, meio cariado,
até ranho de nariz o ressurgido inventou de trazer daquele pedaço de tempo e
adiantou-se, num tom que ele nunca ouvira, que a razão de ele estar ali era
grave. Que doutor tomasse providência, porque o menino, que saiu lá da roça
para ter um dedo de prosa com o homem, ali mesmo enfartaria se não dissesse a
que veio. Mas que se acomodasse bem, porque, corrigiu-se: não era prosa miúda,
não!
O homem apoiou os cotovelos sobre a mesa, depois as
mãos, deixando cair sua cabeça sobre elas e um silêncio perturbador rompeu-se
com a voz que lhe chegava ao coração.
“ Seu doutor! Seu doutor! ” E o homem se arrepiou. Nunca aquela voz o havia tocado com tanta
bondade nas nervuras do seu tempo. Pensou: Veio me buscar!
O assombro espetava a um mais do que ao outro e um
misto de emoções fez aqueles ambientes internos buscarem entendimentos para as
razões necessárias de um período entre o passado e o presente que ambos
experimentaram. Era ilusão de febre,
daquela que arde os olhos e faz cegar as verdades explícitas. Era! Não era!
Quanto mais se negava, mais concordava e
vice-versa. Com a razão compactada,
achou por bem extraviar a visão de perto e poder enxergar mais longe, bem lá
atrás, de onde o menino ressurgiu, para poder se equilibrar.
– Pois não, menino, em que lhe posso ser útil?
Diga-me, porque aqui, neste consultório, sou-lhe um serviçal.
“Seu doutor, eu venho aqui pra contar sobre minha
moléstia. Dá remédio pr’aquietá meu
peito. Bota a danada quietinha no seu lugar”
– Farei de tudo para ajudá-lo. Conte-me sobre ela e
por que me procurou?
“ Doutor, quero viver minh’meninice. Eu era filho
do campo, mas dizia pros pais que da vila eu tinha qui ser. Oh, saudade! Agora descobri: tenho sangue caipira e não
consigo iscondê!”
– Deixe-me ver se o entendi: há algo que você tentou esconder? É essa a
“moléstia” que o está matando?
“Isso mesmo, doutor! Nasci pra sê do mato, mas precisava
aprendê lê e iscrevê. Botei as traia na mala, peguei o trem na estação, deixei lá
minha mãe aos prantos e vim pra cidade grande
istudá e arranjá trabalho ...
– Mas, amigo, quem lhe disse que você nasceu para
ser do mato? Quando veio para a cidade isso não lhe alegrava o coração?
“Ô, doutor, eu simplesmente aconteci no mato. Vir
pra cidade grande alegrava sim, senhor! Tratei de arrumá a vida, enfrentei a
faculdade e a solidão brotou em mim.
Virei gente com condição e senti qu’era mais eu.”
– Mas, amigo,
quando diz que “ senti qu’era mais eu”, não acha que foi um encontro que o
amigo teve consigo diante dos percalços pelos quais passou para chegar onde
chegou?
“Doutor, aquele
poder qu’eu tinha de dizer ‘qu’era mais eu’, um dia foi se acabando. Olha
dentro de mim, doutor, enxergue a saudade aqui nesse meu peito, qu’é um abismo!
”
– Amigo, acho que a sua “moléstia” chama-se
nostalgia.
“ Num sei se é ou se num é. Mas se for, o doutor
tem razão. Onde nasci tinha vida pra criança, diferente dessa cidade pra gente
grande. Tinha um corguim manso, sereno e de águas cristalinas que meu avô
chamava de Brumadinho, as águas dele usaram pro meu batismo, lá na Igreja de
São João Bosco. “João Bosco”. Nome que minha mãe adorava e com ele me
registrou. Meu avô desviô o curso
d’água pra regá sua plantação. Dali, ela escorria farta e movia o minjolo que
beirava a porta da nossa casinha - mei de talba, mei de tijolo -, qu’o meu
painho fez. ”
Ecoaram-lhe os sons das gotas d’água que escapavam
do monjolo e bailavam no ar, respingando em seus olhos, escorrendo-lhe na face...
– O que o amigo me descreve é uma cena bonita de
uma infância saudável, aquela que nos enche o peito de saudade...
“ E num é, doutor! Naquela engenhoca eu via pilá o
milho, descascá o café. Era uma alegria danada. De madrugadinha nóis tava tudo
de pé. Comia pão assado na lenha, com mantêga batida na garrafa, rapadura... O
leite saía mornim das tetas das vacas. Oh, quanta doçura...”
– Ai, que delícia! Lembro-me desses dias. Você tem
razão! Aquela manteiga batida na garrafa, passada na fatia de pão quentinho,
com chá de erva-doce que a vovó fazia...
Os olhos do doutor pareciam que iam verter
lágrimas. Se afligiu. No íntimo perguntava-se como se permitiu romper esses
elos. Sentiu que pegaria atalho contrário, obrigando-o a adiamentos. Foi forte,
regressou à consulta para não assustar seu paciente naquela ocasião.
“ Ah, o doutor sabe qui dá vontade de chorá. Mas
escuta minha história: Meu pai ordenhava na minha caneca... Eita, diacho! Fazia
um monte de espuma! ”
– Eu sei! Às vezes, ele punha conhaque, não é
mesmo?
“ Isso
mesmo! Às veiz ele ponhava conhaque pra miorá aquela delícia! Pra me sentir um
home feito, fazia da espuma do leite meu bigode. Hum... e o aroma das pururucas
de porco que minha mãe fazia no tacho perfuma até hoje a minha lembrança. ”
– Nossa, e como perfuma! Comer aquele torresminho espremido, com arroz
feito na banha não tinha preço. O dinheiro que tenho hoje não paga aquele
carinho da minha mãe, tão preocupada com as unhas dos meus pés que viviam
inflamadas de tanto eu andar nos brejos.
“Ah, doutor! Tá vendo só! Tem remédio pra gente
vivê algo mió? ”
– No nosso caso não tem não, menino! Não tem, não!
“Então, agora, doutor, o senhor vai ouvi a minha
história sem me interrompê. ”
Doutor João Bosco abaixou a cabeça e sabia que ia chorar.
Mas inverteu a conversa, porque era o menino consultado que precisava escutar.
– Menino, escuta como foi: trabalhei muito para ser
o que sou. Trilhei caminhos cansados.
Casei-me com a mulher que eu amava, esposa formada, bonita que me ajudou
a crescer na vida. Minha missão foi traçada, não inventada. Hoje, estou aqui,
neste tempo veterano, falando das minhas agonias. Dei de encostar meus
pensamentos na aurora da minha infância e dizer-lhe bom dia. Mas ela não me
responde!
“Eu compreendo, doutor. Nesses anos todo, senti a
nossa distância. ”
– Sentiu a nossa distância? Será qu’aurora
envelheceu como eu? Será que perdeu a identidade também? Oh, verdade doída, menino! Pensa que é só
você que tem coração?
“Não, doutor. Sei que o seu coração dói um pouco
mais que o meu, porque o senhor estudou, conhece coração por dentro. Mas qué
sabê? Quando eu olho pra mim vejo
aquelas formiguinhas ligeiras carregando as foias pros seus formigueros, nas
raízes das nossas mangueras. Era um vaivém de formigas que deixava meus zóios
zonzos. Eu sei que ocê matava um punhado delas quando deitava embaixo dos pés
de frutas que sombreavam o quintal e, oiando o sol vazando entre as foias,
ouvia o equilíbrio dos cantos dos pássaros. Mas dava um sono danado de bom, sô!
”
– Você tem razão, moleque danado! Depois de almoçar aquela fartura que mamãe
preparava, ia brincar debaixo das mangueiras e ali mesmo eu adormecia. Esse
tipo de árvore não vejo em cidades grandes... que fartura de vida que eu tive!
Ali, eu tirava uma pestana até mamãe me chamar para o café da tarde. De novo a
gente comia. Batata doce e milho assados. Queijo com doce de leite, broa de
fubá com café coado na hora... E a gente comia o dia inteiro sem medo
“dingordá” – rindo muito – porque a fartura era grande demais, num “pudia
disperdiçá”.
E continuou
rindo. Doutor divertia-se e divagava enquanto conversava com o menino.
“É… mas agora o senhor é doutor. Tem que mandá seus
pacientes manerá na comida, fazê
exercícios em academia, porque a vida estressante da cidade grande é
mesmo de matá.”
– Verdade. Lá na nossa infância, era fartura de
gente dentro da gente, de alegria dentro de casa, de natureza rodeando a vida,
de bichos que meu avô e meu pai criavam e eu via crescer. Era fartura demais e
hoje me pergunto o que fiz para merecer toda aquela natureza e, depois, numas
estações longas da minha vida não quis me lembrar daquilo! Rompi o elo com essa parte da minha história.
E o menino foi chegando, acomodando-se no homem.
“Pois é, Joãozinho! O senhor tá entendendo qual é
minha moléstia? ”
– Sim, meu amigo. Eu compreendo as suas razões,
sentindo a sua moléstia. Para consolo aprendi que ficar lembrando da infância
não dava para sustentar a minha família que também precisava viver. E fui me
esquecendo de mim, menino... Esqueci-me da minha história e dos meus pais que
nem tempo de falar sobre eles aos meus filhos eu tive. Esqueci-me de que nem
chorei quando meu melhor amigo, o Tição, morreu picado de cobra sem dar nenhum
latido.
“É, doutor!
Era o Tição, seu cachorro, que protegia o terreno enquanto você armava
as arapucas. ”
– Ele não recebeu de mim uma lágrima, uma oração...
Ai que dor!! Ai que saudade!! Ai que vontade de reviver aquelas rodas de violas
que meu avô juntava com os amigos no terreiro em noite de luar, pra mostrar o
quanto ele era bom repentista e que ninguém consegui ganhar dele. Dos causos
que contavam noite adentro, enquanto vovó fritava bolinhos e servia bules e
bules de café, das famílias que pisaram aquela terra virgem e abriram matas
fechadas e da riqueza da fauna e da flora que a natureza oferecia, das mudanças
dos nomes da vila, de Douradinho para Campestre, de Campestre para Santo
Antônio do Campestre,
para Albuquerque Lins e, finalmente Lins. Falavam dos índios e da
Estrada de Ferro Noroeste do Brasil e de suas gentes. Lembro-me das procissões na Matriz de Santo
Antônio, o padroeiro da cidade, e de quando eu chorava vendo o Cristo morto
pregado na cruz... Lembro-me da dona Iracema Paccola, amiga da mamãe, que doou
a imagem de Nossa Senhora de Fátima, como cumprimento de uma promessa. Que
história mais bonita! Mamãe sempre contava que no momento da coroação da
imagem, um menino soltou uma pombinha, ela pousou na mão do bispo e depois foi
pousar na cabeça da Eunice Zagretti, a menina que coroava a imagem. Emocionado,
o pai dela doou um terreno de sua propriedade para construção do
Santuário. Padre Kondó era só
agradecimentos! Ah, reviver as lembranças acaba que um padre puxa outro e me
veio à memória o padre Eduardo Rebouças.
Baixinho e combativo, fanático pelo time Linense de Futebol,
orgulhava-se do pai que era rábula, nos velhos tempos. Muito culto, dono de uma
vasta biblioteca, professor de filosofia. Excelente pregador, devoto de Maria.
Sofreu um acidente de carro, que teve perda total e os amigos fizeram rifa para
que conseguisse comprar outro. E não é que o danado comprou um carro zerinho e
ainda ficou com dinheiro no bolso? Hei!
Vai me deixar falando sozinho, moleque?
“ Não, senhor! Ouvindo essas histórias, parece que
vejo o professor José Pereira Calças – a fonte do saber linense. Pelo amor de Deus, doutor, ajuda esse menino
que morre com o peso da saudade que emborca dos meus imborná. Lembra daquele
imborná cheinho de mamona, que usava no
seu estilingue feito com gaio da goiabeira, para acertar passarim?”
– Menino,
não me lembre desse crime!
“Que crime?
Alguém te ensinou que matá passarim era crime? E tentá matá o menino que um dia
você foi, escondendo ele lá no passado, é crime? ”
– Amigo,
formei-me doutor. Com tantos estudos e aprendizados tenho o dever de refutar
violências de todos os tipos. Hoje tenho muito dinheiro. Posso pagá-lo, você
aceita me ouvir?
“Carece pagar nada pra mim, não, senhor! ”
– Vou confessar-lhe a minha “moléstia”. Agora, nesta minha velhice, um passarinho
daquela minha infância linense deu de azucrinar meus ouvidos e canta em mim
iguarzim cantava lá, no quintal da
minha meninice.
“Iguarzim a mim também. ”
– Escuta, amigo. Outro dia, peguei meu carro e
voltei àquele lugar, prometendo-me matar a saudade que explodia em meu peito.
Mais morto voltei de lá, quando vi que as terras do meu avô e do meu pai
viraram uma vila toda murada com casas de luxo, sobrados e a porteira fechada
para estranho não poder entrar. Um lado virou condomínio fechado, outra
plantação de cana. Aquela Lins de outrora cresceu, virou cidade grande. Acho que por isso um pássaro de lá, querendo
achar seu ninho, veio pousar em mim. Ai,
menino, acho que aqui quem precisa de consulta sou eu. Lembrei-me do meu pai,
que me botava no colo e dizia qu’aquilo tudo era pr’eu continuar tocando... Eu, seu único herdeiro, depois da morte dos
velhos, passei aquela fartura adiante. Não me havia tempo para o
passado... Confesso, sobrevivi, não tenho
do que me queixar.
“ Doutor, como viver sua meninice se pra chegar
onde chegou, aquela história precisou abandoná?”
– Ah, João
Bosco, tome um remédio que cure esta saudade que o senhor sente de você. Meus
filhos botaram motor nas asas e minha companheira faleceu. Vou pegar minhas
traia de volta, fechar esse consultório, deixar o receituário, me aposentar.
Reviver em Lins, num cantinho onde eu possa fazer meu ninho e o meu pássaro
poder viver. Comprar um pedacinho de
terra onde tenha boa aguada e fazer ali meu santuário. Sob uma árvore que
exista, dizer bom dia à aurora e, se ela quiser me responder, digo-lhe: voltei
e quem está aqui é um filho linense, trazendo no colo o meu menino, com botina
e calção de fundilho puído, para brincar no quintal de terra batida e, juntos,
continuarmos felizes o tempo que me restar nesta vida.
“ E o menino encontrou o remédio pra sua moléstia,
doutor?!”
– Encontrou, menino. Acho bom você vir comigo,
porque não posso abandoná-lo. Mas já vou
lhe dizendo: se um dia este doutor sentir dor, vai ter que aprender a agir,
porque, agora, é você que tem que aprender a curar.
“Doutor, não sou menino precipitado, esperei você
se fazer o que é. Não renegarei seus
estudos, seu status de doutor, seu prestígio, suas teses defendidas, suas
culturas adquiridas e sua fama no campo da medicina. ”
– Tá bom. Vou me dar a oportunidade de reviver meu
menino outra vez. Doutor João, acho que encontrei a cura da minha moléstia:
menino, caipira e doutor eu uni. Tô
satisfeito! Que a minha decisão este
novo homem consagre. E é com tudo que eu sou que eu saberei viver. Isso não é remédio, doutor. Consegui salvar meu menino, isso é
milagre! Que meus filhos possam, na
Cidade das Escolas, me visitar e, se um dia me trouxerem netos, tomara, eles
possam experimentar um pouco da natureza de lá.
Vou cultivar pequena lavoura, molhar meus pés no riacho, plantar uma
mangueira para me sentar debaixo dela e tirar uma pestana depois do almoço.
Quando for necessário, pegar meu carrinho e vir pra capital passear. Foi lá que
nasci e lá pretendo continuar vivendo. Não deixarei de ser doutor. Serei eu e
meu menino no momento em que um do outro precisar.
E depois desta consulta entre suas razões, doutor
João Bosco reestabeleceu o elo com sua história. Curou-se no menino que ele consultou, para
reviver em sua companhia, no futuro que ele escolheu: lá, num cantinho de Lins,
onde um pássaro recanta outrora.
Rita de Cássia Zuim Lavoyer