O PÉ E O SAPATO
O Pé já tinha passado por maus pedaços na vida. Foi perseguido, torturado. Os maus estiveram ao seu encalço sem dó nem piedade. Enquanto Pé, fez-se mão, corpo e cabeça por longo tempo.
_ Para aonde pretende ir, Pé, assim tão descalço? – Perguntou-lhe o Sapato envernizado.
_ Vou a procura da minha conduta – respondeu-lhe o Pé.
_ Mas você acredita que alguém consegue encontrar conduta por aí? Acha mesmo que ela está à disposição de todos?
_ Acho que ela existe, não sei como ela é. Pretendo encontrar a minha – respondeu o Pé
_ Para que deseja outra conduta. Pensa que ainda não a tem?
_ Se a tenho, não a sinto em mim, não deve ser de muito valor. Talvez ninguém a perceba. Preciso de uma que me pese e me dê significado, para que eu pense nela constantemente. Isso deve ser conduta. Por isso quero encontrar a fonte onde ela deve jorrar abundante. - Assim se explicou o Pé para o Sapato.
_Mas, Pé, você sempre andou desse jeito, descalço, desprotegido?
_ Já me senti desprotegido. Algumas coisas do solo ainda me atingem, apesar de a minha sola já estar bem grossa.
_ E os seus calos são resultados dessa sua caminhada a procura da conduta?
_ Pode ser. Mas caminho descalço mesmo porque não tive a sorte de um sapato.
_ Pé, você já ouviu falar em meia?
_ Já ouvi, sim! Ainda não tive a oportunidade de ter uma.
_ Eu posso ajudá-lo a conseguir uma. – O Sapato continuou perguntando: _ Você me conhece?
_ Acho que é um Sapato, ou não?!
_ Isso mesmo, Pé! Eu preciso chegar num lugar bem alto. Posso contratá-lo para levar-me até lá. É só me calçar e chegaremos juntos. Com sorte, poderá encontrar, quem sabe, a conduta que tanto procura.
O Pé, desconfiado, perguntou:
_ Como quer que eu o calce?
_ Enfie-se em mim- respondeu o sapato.
_ Mas você não vê que o meu tamanho é bem maior do que o seu? Além do mais eu sou um Pé velho, você é um Sapato novinho, poderei estragá-lo.
_ Estragar-me não. Poderá alargar-me. O que é bem diferente.
Como nunca antes tinha recusado um desafio, o Pé tentou se enfiar no Sapato. Impossível manter-se dentro dele, mesmo assim caminhou boa jornada encolhendo os dedos e mancando. Meio caminho já tinha sido percorrido quando o Pé, sangrando, chiou:
_ Não quero mais carregá-lo dessa forma, ‘seo’ Sapato. Saia de mim!
Assim o Pé agiu, pinchando longe o Sapato já empoeirado.
Parado no mesmo lugar, o Sapato sabia que não chegaria a lugar algum sem a ajuda daquele Pé. Não querendo aposentar as chuteiras, ponderou. Bateu a poeira, deu-se uma lustrada e, como estava distante do Pé, gritou:
_ Pé, venha me buscar! Encontrei uma outra forma de você me levar ao meu destino!
Com muita dor, o Pé caminhou ao encontro do Sapato.
_ Pé, coloque-me em seu peito, assim você poderá me carregar. Conheço esse tipo de dor que você está sentindo. Logo, logo ela passará e irá esquecê-la.
A proposta foi aceita pelo Pé. Quando ele se erguia para dar um passo, derrubava o Sapato.
_ Pé, desequilibrado desse jeito não me levará a lugar algum, e nós dois nos perderemos no caminho – retrucou nervoso o Sapato.
_ Mas o senhor, Sapato, é pesado demais para eu carregá-lo sozinho.
_ Pé, você tem que aprende a olhar ao seu redor. Ver o seu próximo, enxergando nele o seu complemento. Sozinho, Pé, você não adquirirá o equilíbrio necessário.
_ Quem é o meu próximo, senhor? Tão bom assim que me possa completar?
_ Pé, deixe de ser cego, olhe o seu mais próximo! Quem é ele senão o seu parceiro, o outro pé. São dois, não percebeu ainda?
_ Hum... Se é só um sapato, o que pretende com o outro pé?
_ É simples, coloque-me sobre o seu peito, e sobre o peito do outro pé colocará a meia que eu lhe darei.
_ E por que eu fico com o peso, e ele com paina?
_ Pé, para chegar onde se pretende, precisa deixar de ser ignorante. Conhece o ditado “ O que uma mão faz a outra não precisa ver”? Muito simples, meu caro
Avançaram bem pouco com aquele desequilíbrio total. O Sapato, muito mais pesado do que a meia, não permitia aos pés andarem sem derrubá-lo. Pés e Sapato começaram a se estranhar na metade do caminho.
_ Pé, colocarei dentro da meia uns contrapesos para compensar os lados. Assim, a cada passo que você der, chegando o mais perto possível do meu destino, complementarei no que faltar, o que acha?
_ Posso tentar, senhor Sapato. Darei o melhor de mim para que chegue aonde almeja. Cuidarei de fechar os olhos do outro pé, tomando a rédea da situação.
A cada queda que o Sapato levava, contrapesos eram depositados na meia, e o equilíbrio se anunciava.
_ O que está achando de me carregar, Pé?
_ Ótimo, senhor. Comprometo-me a levá-lo aonde desejar.
Caminharam muito e a meia já estava abarrotada de tanto ser o ponto de equilíbrio daquela empreitada.
_ Senhor Sapato, será necessária outra meia. Esta primeira que o senhor me deu já está muito cheia, poderá romper-se a qualquer momento, o que me deixaria bastante triste, uma vez que ela já tem significado para mim. Se isso acontecer, perderei o equilíbrio e o senhor cairá. Acho que eu o estou conduzindo bem, estamos ganhando terreno, e pretendo levá-lo para ganhar outros. Aconselho-o a providenciar outra meia caso ainda queira que eu o leve ao seu destino.
_ Eu sabia que isso aconteceria. Portanto, já mandei providenciar outro pé-de-meia para você. O que acha, Pé?
_ Excelente, senhor! Todavia, cumpre-me lembrá-lo de que o seu verniz acabou, está opaco.
_ Toda via, meu caro Pé, tem seus altos e baixos, e com a nova meia que ganhará me lustrará sempre, até que eu reflita o meu brilho por onde passarmos. Não é mesmo, Pé?
_ Sim, senhor Sapato!
-Isso! Mas enquanto o outro pé da meia não se enche, esta que já está cheia ficará amarrada a mim, como escudo para me proteger, caso eu venha a cair.
_ Senhor, será muita carga sobre o meu peito. O outro pé poderá carregar a meia cheia, senhor!
_ Não! O outro pé está sem visão. Eu não lhe pedi para fazer o que fez. O ditado dizia “ O que a mão vê...”, não o pé. A carga dele será menor, ela irá aumentando à medida da nossa caminhada, para ele não sentir de uma só vez o peso que carrega. Enquanto ele não vê, você deverá carregá-lo, também, como fardo.
_ Sim, senhor Sapato! As coisas do solo já não me atingem mais.
_ Experiência conquistada, meu caro Pé! Quem é forte de verdade e importante neste trajeto é você, Pé. Você tem significado porque vale muito para mim, meu grande amigo Pé. Quando chegarmos aonde eu quero, eu devolverei todas as meias à você. E depois, se quiser, você as calçará. Poderá procurar o que pretendia mais confortavelmente, o que acha, meu fiel amigo Pé?
_ O que é que eu procurava mesmo, Excelentíssimo Sapato?
Autoria- Rita Lavoyer - Membro da Cia dos Blogueiros