Este conto ganhou menção honrosa no Concurso de Contos Cidade de Araçatuba.
2010
A CARTA - Rita Lavoyer
Observou através do olho mágico tentando ver quem estava do lado de lá, pois o toc-toc da batida na porta o deixou deveras assustado.
Com o olhar fixo naquele olho, retinha a respiração para que nenhum ruído o denunciasse.
Notou que a maçaneta redonda retinia enquanto girava lentamente, no mesmo instante em que sentia que a porta estava sendo forçada.
De repente, tudo permaneceu silencioso como há alguns minutos, logo ouviu o barulhinho de um papel lentamente sendo passado por debaixo da porta. Percebeu um envelope branco. Inteiramente branco entre os seus chinelinhos entreabertos. E passos do lado de fora correram, deixando para trás os pisados de tamancos batendo nos calcanhares.
O homem agachou-se até o chão fazendo sofrer seus joelhos antigos. Tentou alcançar o envelope e, apertando-o entre os dedos, lentamente o ergueu diante de suas vistas. Deu alguns silenciosos passos e levantou o envelope até uma faixa de luz que atravessava um pequeno vão da janela, tentando ver o que trazia além do volume em seu interior. Com as mãos trêmulas, receava abri-lo. Colocou-o num dos bolsos do seu chambre e inquietou-se a andar em círculos dentro da sala.
Apertava o bolso com uma das palmas podendo sentir o volume do objeto que estava dentro do envelope. Conteve seus passos e fixou-se no mesmo lugar em que parou. Iria abri-lo. Olhou-o apertando entre os dedos das mãos. Abriu-o. Dentro também havia uma carta com local, data e assinatura rabiscada.
Desesperado diante daquelas informações, precipitou-se até o porão da casa e subiu ofegante com a sua caixa de ferramentas nos braços. Pôs tudo sobre a cama e, com o auxílio de um pé de cabra, forçou a madeira que compunha o assoalho do armário embutido do seu quarto, arrancando-a. Após extraí-la, por uma escada em espiral, desceu no calabouço.
Pisava cuidadosamente os degraus, apoiando-se no silêncio que precisava manter. Quando sentiu o piso, tentou lembrar-se da localização do interruptor.
Contou alguns passos naquele escuro, bateu a mão na parede e certificou-se de que seus números ainda se mantinham vivos na memória.
Com a ponta do cinto do seu chambre, limpou as secreções acumuladas nos cantos de seus olhos miúdos. Apertou-os, após mirar a urna que se mantinha com o invólucro intacto, para que voltassem a brilhar. Ela encontrava-se em uma posição difícil e perigosa. Sabia da cautela que deveria ter com os seus passos, pois um só em falso o denunciaria. Não se percebia nada e nem um barulho naquele calabouço, a não ser o sigilo úmido das águas que corriam pelos encanamentos dos esgotos, e que dividiam aquele espaço com aquela urna intacta.
Apostou mais alguns passos firmes e seguros, aproximando-se daquele segredo. O invólucro, já ressecado pelo tempo, possibilitou ser arrancado com as mãos, trazendo junto um fragmento. O ruído do objeto tocando o chão fez a espinha, antiga, sentir um frio cadavérico de enrijecer qualquer flacidez senil. O fantasma de um dia rodeava aquela urna ainda tão incólume.
Forçou um agachar dolorido para apanhá-lo. Gemeu uma dor para colocar-se novamente de pé.
− É uma parte dela. Ah, asinhas de borboleta! Agora posso juntá-las. A chave que precisava será composta agora.
Havia chegado o momento. A consumação do sonho se realizaria com aquelas informações trazidas pela carta.
A emoção de poder abri a urna com a chave que ele montaria, poder vê-la e tocá-la, emitia um tilintar de dentes com dentes da sua dentadura. Um calafrio dominou o corpo do velho que precisou agarrar-se em si mesmo, para controlar os agitos da sua emoção.
Administrava a sua respiração a fim de pôr rédeas nas palpitações que ecoavam nas paredes da sua alma. Ouviu, então, bater várias vezes na mesma porta que fora forçada. O desespero o dominava, mas sabendo que não havia mais tempo, agarrou-se à proteção do seu silêncio. Levantou-se rapidamente para continuar o seu feito.
− Ah, está trancada! As ferramentas?! A chave? A outra parte está dentro do envelope. Ficaram lá em cima, sobre a minha cama. Tenho que ser rápido antes que o tempo expire. Eu a abrirei, vou contar, contarei tudo...
Na sua ansiosa subida, o bico do seu chinelinho de quarto bateu na quina de um degrau da escada e não houve como evitar a queda.
Com a cabeça sangrando, o velho soltou um grito inaudível para o tempo, que se encarregará de informar ao mundo, pelo seu cheiro, aquele segredo.
RITA LAVOYER