_ Nasceu?
_ Nossa, que coisa estranha, não achou?
_ Também, veja de onde veio...
_Seu nome, criatura!
_ Greissi, com dois ‘ss’, Diéquisson, com dois ‘ss’ também, da Silva e Silva. Tenho pai e mãe.
_ Ainda tem coragem de dizer isso?
_ Próxima!
_ Com licença, eu sou a próxima. O meu nome é Greissi Diéquisson da Silva e Silva. Vim por causa do anúncio.
_ Sinto muito, mas a vaga já foi preenchida.
_ Mas o senhor me chamou, nem conversamos... Tenho estudo!
_ Acabou de ser preenchida, sinto muito.
Quando ela nasceu não lhe deram crédito. Cresceu sem conhecer o respeito merecido.
Era exceção, os pais eram exceção na comunhão dos bens. Eram ambos Silva e Silva. Mas para ela não foi suficiente a carga dos sobrenomes paternos. Ela era a massa, tinha que fazer parte dela. Não queria entrar nas regras, mas as situações a obrigaram. Desejos despertaram na menina feia que chocava a visão dos que tinham coragem para vê-la.
_ Comer aquilo? Nem de olho fechado.
A difamação da alma ingênua de Greissi, com dois ‘ss’, arrancava gargalhadas.
Greissi Diéquisson da Silva e Silva tinha uma alma que tentava se encaixar num corpo cuja face feia não se enquadrava aos padrões. A vida rejeitava-lhe a alma sem saber dela a consistência.
_ É pegar ou largar. Pra você... dê-se por satisfeita!
Greissi Diéquisson da Silva e Silva recusara aquilo por diversas vezes para honrar os pais, exceções no meio de tantas regras. Eram os Silva e Silva.
Greissi Diéquisson tinha pai e tinha mãe e tinha registro de nascimento e tinha Registro Geral e tinha Cadastro de Pessoa Física e tinha um corpo e tinha uma alma e tinha dois sobrenomes únicos, compostos de simplicidade.
.
Não houve como e a princesa na cadeia apanhou também, mas durou pouco a sua passagem por lá. 171, porque já não mais 18. Que pena, Greissi!
Foi surrada, comida, cuspida, largada...
Para o lixo
UM CORPO PARA A MINHA ALMA.
Ela anda tão vagante, fria e pálida. A minha alma anda assim, perdendo o colorido dos olhos. Sem ele, os meus olhos veem uma alma opaca, vazia.
A minha alma procura um corpo onde ela possa se encostar, porque o corpo que ela tinha morreu solitário, mutilado, sem ter sido tocado.
A minha alma procura um corpo que tenha sangue quente correndo dentro dele, para poder aquecê-la da frieza da indiferença.
A minha alma procura um corpo que lhe devolva as forças perdidas em uma batalha cuja arma era ela própria.
A minha alma procura um corpo que tenha um coração do lado para pulsarem juntos. Um corpo que possua braços abertos e mãos firmes que permitam ser cumprimentadas após cada vitória.
A minha alma procura um corpo de um ser feito de gente e não de páginas de agenda lotadas, sem ter com ela nenhum compromisso.
Um corpo não realista, nem simbolista, mas que exista e que esteja em seu tempo e a transcenda o espaço, fazendo-se análogos.
Um corpo que a recupere da inexperiência dos sentidos, que de suas linhas neo-modernistas edifique sua antiga construção, capacitando-a para sermos nós.
Um corpo que advogue seus pecados e se refugie nela, e que a socorra na necessidade em que ela se acha.
Um corpo que feche suas cicatrizes íntimas de alma desprezada, e que a ressuscite do sepulcro em que ela jaz, para que ela descanse em paz na imortalidade.
A minha alma procura um corpo que está ao seu lado, mas que não a vê.
_ Eu o vejo, meu feto. Eu o jogo para não trazer ao mundo mais uma Greissi Diéquisson da Silva e Silva. O mundo não sabe, meu feto, mas se faço isso, é porque, antes de amá-lo, eu o respeito primeiro. Queria, meu feto, ter estado no teu lugar para não ser obrigada a fazer o que faço hoje. Não tenho medo da condenação. Já fui condenada quando nasci. Aos que leram, ouviram ou ficaram sabendo do feto que foi jogado no lixo, e me julgaram, como esta narradora, eu peço perdão.
História de tantos outros Silvas e Silvas que nasceram excluídos e que foram condenados por palavras escritas, faladas, pensadas antes mesmos de saberem de vocês as causas.
4 comentários:
Uma dura e real abordagem, feita pela Rita.
Os nomes são vistos como identidade psicológica, mental, das pessoas. Sobrenome Silva e Silva é de doer. É um Lula ao quadrado. Vejam a diferença: Dom Rafael de Orleans e Bragança... Só a apresentação dispensa qualquer comentário. Acertou, Rita!
Carinho,
Jorge
Dois textos fortíssimos, complementares à série que acompanhamos neste seu blog. E acompanhamos aturdidos, com a respiração suspensa, pela verdade e pela denúncia que encerram. Que não pare por aí o necessário resgate dos milhões de Silva e Silva desse país. Bravo, Rita.
Oi, querida! Seu texto é muito forte, e muito forte também!!
Parabéns!! ^^
Comenta lá no meu blog!!
RIOT kisses,
Mari.
Fico imaginando a origem geográfica da Graissi. Os Silvas, se são como escreveu o Jorge, já sabemos. É a biografia de um brasileiro que, brilhante e heroicamente, escapou do lixo. Em que condições veio ao mundo esse feto? Foi um natimorto, fruto do amor na periferia cruel, que não vingou? Graissi queria o feto ou livrou-se dele? O que vai no coração de uma mulher, mesmo Silva Silva, paupérrima sozinha na dor? A sociedade é responsável por essa violência; Silva Silva só abre caminho lutando, invisível, mas jamais será reconhecida por quem deveria, por obrigação, acolhê-la.
Postar um comentário