Era uma vez quando o meu avô contava histórias, mas na primeira e na segunda vez eu não estava. Na terceira e na quarta ela contou aquela que era uma vez e eu ouvi. Tinha um tal de sei lá o quê. Uma coisa estranha, duas ou três, sei lá. É que eu não entendi direito a da terceira, mas mais ou menos me lembro da quarta.
Ele contava que o pai dele quando contava, naquela época era só na lamparina, aquelas que eram uma vez, ele contava duas a duas, mas eram só duas de cada vez. Dizia que a contação varava a madrugada. A vizinhança era toda freguesa daquelas histórias de era uma vez. Eram muitas vezes a mesma história de era uma vez.
A cada vez que ele, o meu avô, contava aquelas histórias que o pai dele contava eu me encantava um pouco mais, porque já não eram mais a terceira e nem a quarta, mais já era pra mais de um bocado de vez. A cada vez era uma coisa nova que eu ouvia, mas era sempre a mesma história, aquela que era uma vez mas que eu ouvi só da terceira e da quarta e pra mais de um bocado de vez.
Olha, ele fez muito bem o que ele fez. Contou várias vezes aquela história de era uma vez sem errar nenhuma vez. Era tão real o que ele contava, apesar de ser sempre tudo igual, que de dentro de casa, onde ele contava a história, parecia que eu estava lá no quintal.
O lobisomem, bem, tinha um homem que quando o pai dele contava, o avô da minha mãe, que aquele homem não acreditava em lobisomem, mas quando ele contou, o biso, quando ele contou até três, porque no um e no dois o homem estava conversando e não ouviu a contação, correram.
Uma vez quando ele ia contar aquela história de era uma vez, eu perguntei a ele porque ele pulava a parte que conta o jeito que o homem que não acreditava em lobisomem ficou. Ele falou que era uma história real e que lobisomem, bicho-papão e lobo mau não eram coisas para crianças, porque esses bichos fazem muito mal. Eles ficam sempre lá no quintal querendo pegar criancinhas. Meu avô era muito verdadeiro, eu acreditava nele.
Era tudo tão real que até hoje eu acredito que tem coisas feias lá no quintal. Por isso, eu não conto essas histórias e não deixo os meus filhos irem lá fora dependendo da hora. Vai que lá tem lobo mau! Mas eu já falei pra eles, “tipo assim” ... em forma de histórias. Mas eu sou melhor que o meu avô e o avô da minha mãe, porque quando eu conto não sou daqueles que cada conto aumenta um ponto. Eu conto e pronto. Ponto final. Não tem nem mais nem menos e mando logo dormir e é só uma vez.
Ai se não escovam os dentes! Eu aviso, dentro da boca tem muitos bichos. Têm que lavar a boca antes de irem dormir. Criançada de hoje tem uma boca suja! Usam isso, usam aquilo e estão sempre impuras, as bocas. Quando vão dormir estão sempre com medo. Já avisei pra ficarem atentos com o mundo de fora. Por dentro está seguro, tem grades, tem alarmes. São esses filmes que eles assistem. Futuristas, sensacionalistas. Há especialistas nisso: assombrar crianças.
Depois eles crescem e querem fazer igual. Uns o filme, outros a cena.
Às vezes, viram a pura verdade. Nas cidades grandes tem pouco quintal Sei lá, o espaço é pequeno. Vai ver por isso não tem mais histórias, mais vizinhanças. Nem infância. Dá uma saudade... Ai! Que saudade !
“Ai! Que saudade!
Da minha bola biroca, da bira e do meu bodoque e o meu carrinho de madeira. Eu pulava o balaústre pra brincar com o meu vizinho de manhã e a tarde inteira.
Na rua que era terra eu sempre pulava corda.
Só parava de brincar quando mamãe dava um berro.
Dormia com os pés sujos sempre que eu escapava de apanhar de fio-de-ferro.
Vez em sempre eu ficava na casa dos meus avós.
Lá também me divertia. Tinha courinho no feijão, chá quentinho e pão-de-ló.
Meu avô tocava roça e levava os netos para ver a plantação.
A emoção lavava meu rosto quando via meu avô carregando o Cristo na cruz na frente na procissão.
A missa domingueira, macarrão e o matinê. Era o Tarzã ou Mazarope, bang-bang, qualquer filme me divertia porque eu não sabia ler.
Era uma pobreza tão rica e sonhos mil.
A vida era tão boa que os sonhos , hoje, são realidade e a minha infância é tão saudade...”
Antes de dormirem lavem as mãos, pode passar barata. Não põem os pés nas paredes, a faxina é barata, mas não é de graça. Pare um pouco com esse computador, vai lhe dar dor nos dedos. Não assustem o menor que ele fica com medo, não dorme à noite. Desligue um pouco esse celular!!!
Não aprendem nunca! Toda a noite é a mesma ladainha.
Imagem: ludy-quadrinhosdisney.blogspot.com
Rita Lavoyer e membro da Cia dos blogueiros de Araçatuba
4 comentários:
É bom não esquecer que Rita é autora de livros infantis. A linguagem não é a mesma, e ela adquiriu uma maneira de escrever muito diferenciada.
Aqui, no meu entendimento, mandou um, dois, mil recados para maus entendedores.
Beijos, autora.
Jorge
Rita: reminiscências da infância - de tantas vezes da terceira e da quarta, quase pego a calculadora. A roça do vovô (continua bisbilhotando o meu passado), que saudades. Você não é melhor que o seu avô (rsrsrs) aposto. Hoje eu não conheço os meus vizinhos. A culpa e sua...
Não sei se sentimental ou romântico, mas o conteúdo é legal. Muito bom!
Forte abraço,
Picasso.
Rita,
Adorei a contação e as vezes todas de era uma vez. Conta de novo estas e outras tão boas quanto. Conta, conta, conta. Um beijo pra você.
Adorei essas estórias.Vou voltar mais vezes p/ ouvi-las.
bjs
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