Um aspirante a escritor sonhava algo interessante para pôr em uma história sua. Escreveu terra e em seguida água.
Deslizou o seu grafite misturando um elemento ao outro. Desta conjunção surgiu uma lama que já marcava o branco do seu papel. Foi revolvendo aquela mistura com a ponta do seu lápis permitindo-a disforme em suas conformidades a fim, de ele mesmo, aperfeiçoar-se em sua atividade. Em cada linha em que a sua figura se fazia presente o tema desmoronava.
Percebendo-se inábil para o ofício, tratou de se especializar. Projetou-o e traçou sua planta baixa planejando o seu engenho com instrumentos que lhe eram empíricos, proporcionando à celulose vibrações as mais variadas entre sonhos e delírios amassados, enchendo de papéis um cesto do canto. Deixou a sua ideia concretizar, resultando um barro sujeito à consistência.
Vendo-o sem coesão, buscou recursos na ciência da modelagem. Naquela folha, o carbono cristalino formava uma silhueta lexical sombria sobre um fundo branco, deixando à vista uma lógica incoerência no papel do sonhador com a sua matéria.
Na ânsia de botá-la em pé, o aprendiz esmerou-se na arte da marcenaria. Com uma lâmina, lascou a madeira do seu lápis e criou uma coluna para aquela abstração quase uniforme, possibilitando-a nominá-la objeto do seu plano estático. Dado a escultor, talhou-a, concretizando aquela figura.
No canto da página, um arco-íris de palavras era pincelado pelo pintor que o artista se permitiu ser, colorindo as interrogativas que surgiram no decorrer do ofício, e o sopro do agente sobre as cores, para secá-las, preenchia o significado daquele significante, dando-lhe volume, descrevendo a beleza de uma mulher sob o ângulo da sua visão.
Arquitetou diversos códigos e outras mãos de obra, nele, afloravam-se para decorarem o interior daquele ambiente feminino escrito com um lápis. Quanto mais o seu projeto ia tomando forma, muito mais aquela personagem deixava de ser oculta e se determinava naquele roteiro propositalmente destinado a ela. Deixando a condição de aprendiz, o projetista já não a queria mais coadjuvante. Signos e mais signos cristalinos fantasiavam a autoestima daquela sua projeção e a redação já possuía começo e meio definidos. O clima foi surgindo à medida que o redator harmonizava as suas construções sintáticas, dando dinamicidade à sua personagem.
Encaixados muitos fragmentos da arte naquela estrutura, o dono daquela mão que dominava o objeto de escrever, gravou-se primeira pessoa naquela narrativa e na sua cria depositou todo o seu ego. Ela o gerou e pariu para ele o enredo de uma história. Transformada em protagonista, não tendo afinidades consigo mesma, ela se apaixonou pelo seu criador.
Vendo o seu objeto crescendo diante de seus olhos, operando uma disjunção entre o seu sonho e a vida da sua criatura, o escritor puxou-lhe as rédeas. Sem conflito nenhum com a sua condição, num instante, ele rascunhou outro personagem a sua imagem e semelhança denominando-o “homem”. Deu-o à ela em casamento de papel passado à força do seu punho, sem não antes escrever um sorriso feliz nos lábios carnudos daquela mulher que ele criou. Depois de uma leitura refinada, pôs ponto final e assinou: Propriedade de Causa.
Sentindo-se desgostoso com aquele desfecho e não conseguindo mudá-lo, amassou o papel, fez com ele uma bola e o jogou no cesto, falhando na sua performance. Abaixou-se, juntou todos os amassados, pôs fogo e assistiu toda a sua aspiração esvair-se no ar. Ansioso com a carbonização das suas letras, enfiou o rosto dentro daquela fumaça inspirando-a toda, asfixiando-se com a própria criação, sujeitando-se, como sanção, a discursos figurativos, feito água parada jogada por terra.
Rita Lavoyer
Recorri ao mestre, excelência em Literatura, para amparar-me na minha construção.
Com o seu jeito peculiar de quem nasceu para o ofício, disse-me tudo silenciosamente:
"Há muito que consertar".
Consertei dentro do meu alcance.
São professores dessa estirpe que nos honram com o desejo de sermos eternos alunos.
Foi e continuará, apesar de já ser doutor, sendo o meu mestre.
Obrigada professor! Rita de Cássia.
5 comentários:
Não sei como construo um personagem. Ele surge, mas quase sempre tem semelhança com quem conheço. Transformo muitos figurantes dos meus textos de gente imaginária dos livros que leio.
Que encreca você arrumou para comentaristas, Rita.
Beijos,
Jorge
Rita,
Você deu mais poesia à criação. Você deu sentido à obra do criador. Adorei
Helcio
Rita!
Desconstrui-me e reconstrui em atos e fatos vividos com personagens muito queridos, ou não. Mas todos sensivelmente traçados e/ou arquivados / deletados /... talvez para posteridade. Seu texto nos traz à tona a transpiração de uma inspiração! Ótimo!
Abraço da Célia.
Seu texto é bonito, bem construido e inspirador. Assim como vc recorreu ao seu professor, espero contar com a minha. Afinal, muito do que sei ( e falta muito pra saber) devo a você. Não me esqueço das suas orientações no grupo experimental e no clube de leitura.
Oi, Rita. Senti tb neste seu texto uma espécie de fábula com o Homem lá em cima ao criar homem e mulher. Me corrija se estiver errado. De qualquer forma, um ótimo e realista retrato das agruras da criação. Um beijo e parabéns.
Postar um comentário