''Sabe quem é esse garoto caído na foto? É o Rafael, 14 anos, morador de Cariacica (ES) e que sonhava em ser um estilista famoso. Sonhava, porque ele foi assassinado. Foi espancado com paus e pedras. Morto, aos 14 anos de idade. Não tinha envolvimento com crimes, com drogas e passava horas em seu quarto fazendo vestidos para bonecas. Frequentava a igreja do bairro, fazia parte de um grupo de jovens. Segundo a família, Rafael sofria preconceito o tempo todo por ser gay e por ser afeminado, por não se enquadrar no padrão heteronormativo imposto.
Rafael pagou com a vida por viver uma vida que a gente é proibido de viver. Rafael entra pra estatística, não gera protesto da ~gente de bem~ porque não era imagem de santo, não era Jesus em cruz. Era só mais um menino pobre, preto, viado. Menos um, alguns dirão.
Rafael não será mais estilista, porque Rafael foi executado. E os motivos, que ainda estão sendo investigados, já estão muito claros.''
UMA CANÇÃO PARA O
RAFAEL
Na certidão: Rafael Humano Como EU.
Rafael era calmo; seu semblante, angelical. De seus olhos amendoados
podiam-se extrair brilhos multifacetários, e ele os multiplicava em suas
doações para enfeitar ainda mais os traços finais de sua cútis de porcelana.
Os lábios de Rafael tinham contornos delicados e a cor de carmim
exalava uma saúde inspiradora de onde
fluía sorriso farto.
Os cabelos cacheados escondiam-lhe os ombros. A malha, grudada na
silhueta, mostrava peculiaridades expostas num corpo de mito. Assim a natureza
o fez, assim a natureza o queria.
O Rafael se fazia amigo dos colegas com uma
força exagerada de se sentir igual. Era
igual aos demais “Rafaeis”, embora os seus semelhantes o diferenciassem.
Em riste um, outro e tantos
muito “normais”, foram os dedos que apontavam-no em julgamentos
depreciativos.
Oh, Meigo Rafael!
O tempo encurtava-se e as horas prometidas aproximavam-se. Seus passos delicados, outrora firmes,
flutuaram sobre os ponteiros que marcavam o momento da dança no compasso das
ameaças. Sem um par, dançou no palco
marcado por pedras e paus que descrevem a batuta regida por mãos
assassinas.
Com a sua física indefesa, provou trocas de energias, perdendo de vez
as suas partículas elementares. Castraram sua biologia, subtraíram sua
igualdade.
Rasparam-lhe os cabelos, deram cabo àquele sorriso de paz. Os seus olhos injetados de sonhos foram
chutados, fecharam-se diante de tanta
impiedade. Suas folhas com
desenhos de vestidos voaram com o desespero do vento, levando, manchadas, a sua
rasgada ao tempo.
O semblante daquele que um dia
foi, é, agora, deformação. Do seu corpo
estendido no chão, uma geografia desfigurada escorre entre a seca daquele meio natural de relações.
Oh, como eu o vejo, agora, nesse chão pisado e cuspido por “homens de
fibra”?
Cadê você, meu amigo? A sua casa, o seu sobrenome, a sua identidade
cadê?
Que vontade de abraçá-lo e protegê-lo, mas cadê você, meu irmão, nesses
pedaços de corpo que eu vejo?
Ouça a minha canção, meu filho querido! Que eu cantarei a tantos como
você. É um pouquinho do que posso fazer. Quero cantá-los.
Ah! Esqueço-me, sempre, de que eu não sei cantar... Sempre mesmo!
A minha voz não é bela, o meu som não tem ritmo, mas eu quero tanto uma
canção para você, meu esposo!
Vá, meu amante, ouvir a canção que palpitou no seu peito, e arregaçou
as mangas do seu verbo de vida.
Vá, no balanço da alma, exalar o
seu perfume no ateliê do Universo.
Vá, meu pai amado, celebrar o bailado da sua pureza. Da natureza foi
parte integrante, mas quantos amantes não o conheceram no amor.
Oh, criatura perfeita! Em quantas canções ainda tem que gritar? Lá, no
seu encalço, pregaram um decalque e prometeram arrancá-lo com a justiça das
mãos.
Quem sabe no palco de Apolo um anjo lhe cante uma música. Por- que no
do homem, você dançou Rafael. Você dançou!
Onde estiver aprenda: antes de ir à guerra cante uma canção em louvor
ao seu deus. Já sinto, companheiro! Já sinto, que no oráculo ouvirá melodias de
amor.
Vá até ele, um deus o espera para brincarem juntos com um disco cuja
canção não desfigure o seu semblante de gente.
Ouça canções, querido! Ouça
canções.
Perdoe-me !
Perdoe-me, Rafael, mas eu não
sei cantar.
Rita Lavoyer
2 comentários:
Ah! A "elite" castradora que se mostra perfeita na acepção do que a sociedade determina como certo e errado! Quantos Rafaéis Humanos / Ritas Humanas / Célias Humanas percorrem nessa estrada poluída tentando a busca da proteção, dignidade e ética dos valores de "amor ao próximo" e nem sempre conseguem...
Um texto repleto de dolorosas verdades!
Abraço.
Comovente homenagem, Rita. Salve Rafael!
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