Conto de minha autoria classificado com Menção Honrosa no 32º Concurso de Contos Cidade de Araçatuba, 2019.
REFLEXOS DO SILÊNCIO
Enquanto
uns têm a sorte da dúvida, outros o azar da certeza...
PARTE 1 – Se o estopim começou por
aqui, é por aqui que devo expor os
motivos que me levaram a agir, como agia. Mea culpa? Decidam! Como frequentadora das redes sociais, sei que
textos longos são mais achincalhados do que lidos. Sem problema, conseguindo um
leitor para o meu é o suficiente. Vou
dividir meu relato em partes e espalhá-lo pelos grupos. Sei, por experiência,
que cair nas redes sociais pode ser a glória, ou o fim de qualquer pessoa,
autorizo fazerem de mim o que quiserem, inclusive me destroçarem nos
comentários. Dizia-me que a alma possui suas caixas sonoras. Quem ouve uma
sinfonia sem abrir-lhe a acústica não perceberá, jamais, as notas do silêncio
em comunhão com o oxigênio no ato de respirar. Ouvia isso do meu pai, enquanto,
deitada em seu colo, ele acariciava meus cabelos. Já era uma mocinha, mas queria para sempre que
eu fosse sua criança, “a minha Juçara!”
Não me esforçava para interpretar sua filosofia, que ele trazia do
berço. Bom leitor que era, degustava a vida de cada palavra que lia, pois
acreditava, afirmando, que cada uma trazia um DNA definido. Coisas de papai,
homem culto de reputação ilibada e amor imenso à família, imenso! Segundo os
olhares, então. Mamãe, coitada? ouvia os
saberes de papai, mas nada dizia. Encostada nas portas e nas paredes cochichava
consigo mesma que era ignorante demais para compreender o que já nasceu difícil
de ser compreendido, uma porta falando com outra e outra –eu- ouvindo. Não há
necessidade de se dizer que a outra era eu, mas para registrar há. Deixava-nos a sós e voltava aos seus afazeres.
Ela adorava limpar a casa. Dizia que a morada é o reflexo dos seus moradores,
que impressionante, não se descuidava
daquele ambiente. Tudo estava nos devidos lugares. Tudo na nossa casa era
limpo, nada debaixo dos tapetes. continuo
na segunda parte
SEGUNDA PARTE. Decorei quase todos os discursos que papai fazia sobre o
silêncio. Ele os recitava no centro da sala, fixando seu olhar nos bibelôs das
estantes, dizia serem seus discípulos. E é na voz do silêncio que a tempestade
se acalma e blá blá blá. Disse um dia que discurso difícil entorpece, deixa o
ouvinte crescido e o faz balançar a cabeça, concordando. E era de ouvintes
estúpidos que ele precisava. Às vezes, papai excedia na complicação e eu não
entendia, na época, o porquê de ele
defender tanto o silêncio nos ambientes. Via-o atravessando noites elaborando seus
sermões. Escrevia muito. Agora eu. Várias folhas amassadas, algumas eu as tenho
guardadas. Por esses dias, eu as li várias vezes para entender sua obsessão
pelo silêncio. Gostava de ouvi-lo. Enquanto acariciava meus cabelos, mergulhava
no oceano dos seus olhos azuis, que se esverdeavam quando ele alcançava o ápice
da sua emoção. Passávamos horas no sofá, ouvindo um do outro a respiração. Às
vezes, mamãe quebrava o silêncio entre nós com o farfalhar da vassoura pela casa.
TERCEIRA . Aquela Juçara nunca hesitou em investir contra a mulher a quem
atribui as mazelas de sua vida: sua filha!
Sempre tentei sensibilizar quem me ouvia, sobre o ataque que sofri de um desconhecido,
aos quinze anos de idade. Era um dia claro. Ela vinha sozinha do cabeleireiro,
distraidamente... balançando e sentindo o peso de suas madeixas cacheadas
roçando-lhe o pescoço, quando ele a interceptou, arrastou-a e a violentou. Tentou, inutilmente,
se defender. Foi só o que eu aprendi a responder. Aprendi a responder assim. Um
soco na boca cortou-lhe os lábios. Ali,
engolia o silêncio da sua angústia fitando os olhos verdes do algoz que a
sangrava na sua mais infinita intimidade. Devia estar emocionado. Essa história
mal contada foi o que ela aprendeu a responder, a contar, a repetir. Posso não
relatá-la direito, mas é a correta. Pelo menos aquela Juçara aprendeu alguma
coisa. A violência sofrida foi motivo
para que ela desenvolvesse complexos, os mais variados e, ao longo da vida,
os descarregava, exclusivamente, sobre
sua primeira filha: Ofélia, fruto do
doloroso e infeliz ocorrido com aquela mocinha que foi arrumar os cabelos para
apresentar-se bela no baile de debutante, onde suas amigas, e ela, ladeadas
pelos seus padrinhos, valsariam, ruflando os tecidos das saias de seus
vestidos, meigamente bordados para aquela ocasião. Mas aquela alegria lhe fora
violentamente roubada. Só as amigas foram ao baile. Aquela Juçara não! As
circunstâncias que se agravaram ensinaram aquela Juçara a amar o ódio. Assim,
na época, odiou os pais que, empestados
pelas crenças da sobrevivência das almas e dos carmas que se carrega,
acreditavam no pecado do aborto! Quando pecado, dizia Juçara, era carregar,
eternamente no ventre da memória, as imagens com as quais aquela criança foi
concebida. Descumpriram uma lei que, para a situação dela era mais do que
benéfica e, diante dos olhos da sociedade, sofreu um castigo por um crime cometido por outro
e que ela, aquela Juçara, teve que calar
dentro das celas do destino nas quais não pediu para estar, em obediência ao
pai e à mãe, especialmente esta, que
respeitava os dogmas do marido. E por
fim odiou “aquilo”, o bebê que não era dela, era do seu aliciador; e perdoar a
existência “daquilo”, dizia, era avalizar o pecado. Ao seu pai, como mártir que
aceitou criar o fruto do estupro de sua filha, e por seu devotamento às
palavras que exprimia com sua fé, lucrou com o mais alto posto naquela igreja
da comunidade cujos discípulos, sob sua batuta, ele sonhava, haveriam de
desenvolver o dom do perdão. Talvez não tenha sido estupro, mas os pais –
reservados que eram – queriam encobrir
a promiscuidade da filha. Cochichavam isso.
Quarta- E era assim que acontecia.
Dava voz aos meus sentimentos, vociferava contra Ofélia. Acusava-a ser a culpada
por ter perdido minha juventude e desqualificado minha silhueta de menina em
formação! Não conseguia ver beleza alguma “naquilo”, avaliava-a como mal-amada.
Quem, por ventura, sentiria atração por algo tão feio? Tão desapresentável aos
olhos do desejo? “Aquilo” certamente serviria como objeto de uso. Era assim que
eu sempre pensava, e pensava em voz alta. Observações dessa natureza eram espalhadas com
amargura por mim, que as queria registradas, como nódoas, nas paredes
existenciais de Ofélia, fazendo seu coração, maternalmente desamparado,
bater-lhe entre o estômago e o fígado, amargurando-a. Como lenitivo, à Juçara a vida deu um marido arranjado pelo pai, que a aceitou sabendo da
existência da filha e, com ele, teve seu amado e dedicado filho Pedro Paulo, o
Pepe. Juçara não levou Ofélia consigo. Ela ficou sob os cuidados dos avós que,
sem condições de proporcionar-lhe bons estudos e, já adulta, como consolo,
tentaram arrumar-lhe um esposo que a amparasse. Doentes e idosos, os avós
faleceram em curto espaço de tempo um do outro, quando Ofélia, casada, já tinha
um filho nos braços. Pepe, experiente no rumo da vida, partiu, deixou-me chorando
a ausência da sua beleza. Ficaram ela e Ofélia na mesma cidade. Ofélia, para
ela massacrar, quando precisava desopilar o fígado. Ofélia conseguiu, além do
esposo indicado pelo avô, um emprego de
faxineira, uma casa que ela insistia em chamar de sua
e sua deusa: uma moto de segunda mão. Ela adorava cuidar do que tinha,
só não do gato do marido e do hamster do filho. A mãe desmerecia-lhe a casa
ironizando-a como uma casinha popular! Objeto de programas políticos! Num
conjunto habitacional que tinha o perfil de miseráveis como Ofélia e seu esposo.
Pensado para quem a existência é um peso social. Para mim Ofélia era um peso.
Quinta-
Aborrecida com nossas discussões, Ofélia aliviava-se pegando estradas onde
pouca, ou nenhuma fiscalização a flagrasse sem o capacete. Mulher de olhar
desambicioso não traz, em seus 32 anos, nada que lhe ornamente a vida. Somente
ela e o seu modo simples de ser. Poder sentir o vento em seu rosto magro e
calcificado de histórias de um passado que não era dela, não tinha preço. Voava
uma liberdade sequer sonhada, sem temer não ver o sol do amanhã. Imaginava. Mesmo não querendo-a, tinha imensa
necessidade de marcar presença naquela casa em que Ofélia insistia em chamar de
sua propriedade. Ser reconhecida pelo genro era uma urgência necessária. Rui,
homem de corpo definido e de aparência rústica, surpreende pela delicadeza com
que trata a todos. Esposo e pai atencioso, é mais um que aumenta a classe
operária da construção civil durante o dia e, algumas noites, quando consegue, é
vigia. Foi o jovem discípulo escolhido e
seduzido pelo avô, então missionário, a ser o esposo de Ofélia, com quem
elaborava projetos e sonhos: aumentar a
casa e economizar para estudarem o filho, hoje com seis anos. A solidão na boa
casa que o filho alugara, no bairro de classe alta, que trazia sempre
desorganizada, perturbava-a. O tempo, há anos, tornou-se lento. Os contatos nas
redes sociais não bastavam, mas eram necessários. Na vida ociosa que levava
revivia os traumas da violência que sofria. Sofria! Eles me consumiam e me
perturbavam. Por que teve que ser comigo? Precisava participar da vida de
Ofélia, nem que fosse para infernizar! Sobrava tempo para imaginar as possíveis
“falhas” que a filha cometia na limpeza da casa dela, que eu julgava ser
imunda. Um dia, Ofélia agradeceu por ter lavado as
botinas do Rui. Nem ela faria melhor! – Jura? Ser gratificada pelos seus feitos
era o seu desejo, pelo genro uma necessidade.
QUINTA - Sempre contrariada, mas não
derrotada, liguei para Pepe. Pedi dinheiro para comprar um celular para o Maicon,
meu neto. Queria presenteá-lo. Por nada, acusou-me de desmerecer a coitada da
filha. Elimine essa raiva que traz da Ofélia. Volte a se tratar. Sei que
recusava os remédios, mas o ajudam... Se sentirá melhor. Você vai matá-la um
dia com esse seu modo estúpido de lidar com ela! Nem meu pai conseguiu conviver com você, por
isso sumiu. Ocupe sua mente com algo saudável, que lhe dê prazer! Saia de rodas
de fofocas da internet que sua vida melhora! Estou em viagem, mando o celular
pelo correio, no seu endereço. Mas nunca diga que fui eu quem lhe deu. Não
vamos constrangê-los. E pare de reclamar da Ofélia, ela é sua filha, entenda
isso de uma vez, mulher! Não a culpe pelos fatos. Mas culpava a mim? Culpava-me
por um fardo que eu não conseguia carregar. Desligou, deixando-me, como sempre, no vácuo. Pepe
cuidou para que o celular chegasse programado e funcionando. Aquela Juçara sonhava conhecer a cidade e a
casa onde o filho residia. Conhecer sua rotina, suas alegrias, seus amigos,
suas namoradas, seus carros, suas viagens, ver de perto as postagens que o
filho faz nas redes sociais. Mas ele
esquiva-se estar sempre viajando a trabalhos. Quando não se comunica por
telefone, a virtualidade a mantém
informada sobre a rotina dele. Queria
fazer parte da família de Ofélia, que ainda não lhe pertence.
Parte 7. Pouco a pouco, fui intensificando
as visitas, sem avisar, aquela casa: casa que Ofélia insistia em chamar de
“minha propriedade”, isso me irritava, procurando marcar limites à mãe que faz
por ignorá-los. Intrometia-se na vida daqueles e descuida da própria higiene,
fato que incomoda o sensível olfato do neto que não titubeia em expulsá-la de
perto de si. Para conquistar o afeto do menino presenteou-o com um livro
infantil e o celular, e aproveitou para desmerecer Ofélia. Sua mãe é muito pobre, vai ser faxineira a
vida inteira. Nunca lhe dará uma vida melhor. Seu pai é um ignorante. Vai lhe
proporcionar qual futuro? Comece a ler livros. Leituras o ajudarão a pensar
para fora... pensar grande... Este celular fui eu que comprei. Não ganho muito,
somente o aluguel de uma casinha simples que herdei de papai. Meu filho Pepe me
ajuda, tem bom emprego... Minha mãe não
é pobre, vó! Ela e meu pai trabalham. Sai de perto de mim! Você tem cheiro
ruim! Você não gosta da minha mãe! Meu pai falou que não quer que você dê
sobras de comida para o Melro. Gato come ração e a comida faz mal para ele. Meu
pai gosta muito do gato, se ele ficar doente meu pai vai ficar triste. Não tire
a gaiola do hamster do meu quarto. Ninguém aqui gosta que você mexa e tire
nossas coisas do lugar, só para bagunçar! Isso foi ruim e não hesitei. Seu pai é um estúpido e não entende de
gatos. Ouvi que os antigos reis adoravam
gatos. Cortavam-lhes as pontas dos rabos e tomavam o sangue daquele ferimento
para ter vida longa. O menino ouvia assustado. Você sabe mexer neste aparelho?
Lembre-se: mantenha-o escondido por enquanto. Fique no seu quarto com ele. Se
um dia alguém perguntar quem lhe deu, diga que foi sua mãe que o comprou. Mas
não agora. Adicione todos os seus amiguinhos. Vou lhe passar a lista dos meus
contatos só para você ir se adaptando ao universo virtual e encontrando pessoas
e grupos que lhe interessem. Vai se divertir muito. Quero que aprenda a filmar.
Quando sua mãe sair do banho esconda-o dentro deste livrinho, é infantil. Ela é
tão alheia que nem vida virtual tem, portanto não saberá que você frequenta
esse universo. Finja que o está lendo. Se sentirá segura vendo-o com um livro
nas mãos. Fiz isso. Pepe comprou outro
carro e postou na sua página. Homem de negócios. Carros entram e saem da sua
vida. Perguntou se havia entregado o
celular ao sobrinho e desligou. Aquela Juçara foi tomando para si, como
obrigatórios, os atos e fatos que aconteciam rotineiramente na família que era
da Ofélia. Incomodada com aquela
insistência, solicitou-me que não aparecesse com tanta frequência. Algumas
discussões atravessavam os muros rentes às suas paredes, chegando aos ouvidos
dos vizinhos. Travaram, ambas, várias lutas na tentativa de demarcarem seus
postos na casa em que Ofélia insistia ser “minha propriedade!”. O relato é longo. Mas essa noite foi terrível.
Isso precisa ter um fim.
7- O menino gravava parte de algumas
discussões, com o celular escondido dentro do livro, eu sei. Rui foi perdendo a delicadeza e, já desolado
de tanto discutir com a esposa diante do filho voltava tarde para casa. Maicon
tranca-se no quarto e distrai-se com seu celular, enquanto Ofélia esquece-se em seus afazeres. O garoto gosta de filmagens. Registra os
movimentos do Melro observando o hamster. Ele entende que os animais se
comunicam civilizadamente, porque um fica dentro e outro fora da gaiola. Ofélia, numa tarde de fúria, após grave
discussão, pegou o filho e, juntos, na moto, saíram sem rumo, para enganar o
tempo necessário até me retirar da casa.
Já era tarde quando voltaram. As portas
estavam destrancadas. Ofélia
precaveu-se, trancou todas. Previa-se
que mãe e filho, novamente, dividiriam a mesma cama naquela noite. Agora
sou eu. Prenha, a madrugada cega que eu tracei pariria absurdos e suspeitas com
resultados insolúveis para sempre. Ofélia tentava dormir o sono que lhe
recuperasse a vida perdida em contendas com a mãe. Um barulho acordou a
moradora. Assustada, ela se levantou. Encontrou-me com a vassoura nas
mãos. Dei ordens para que voltasse a
dormir, evitando que Rui a procurasse – se chegasse. Com raiva redobrada, por perceber que fiz
cópias das chaves de sua casa, avançou
sobre mim. A força da história dolorosa
que eu carregava, o peso das palavras que eu proferia, somados aos violentos
golpes que lhe dei, atordoaram “aquilo” que um dia me foi um feto. Juçara não
perderia, naquele momento, a oportunidade de fazer o que não fez quando deu à
luz àquele fruto da violência que sofrera.
Acreditam que uma mocinha de 15 anos engravida de primeira? Juçara seria
violenta, firme e corajosa. Era a oportunidade para se livrar de Ofélia.
Continuando. A vítima esqueceu-se do
medo que sempre engoliu. O olhar apático e desambicioso daquela mulher triste
cegou-se naquele momento. Quis sair em sua defesa, lançou-se contra Juçara,
tentando imobilizá-la. Que fera a invadiu para torná-la assim, humana, tão
rapidamente, revelando seu DNA? As gritarias acordaram Maicon. Ele levantou-se
com o celular nas mãos. Enquanto estava em desvantagem, Juçara sangrou no rosto
e o menino, escondido - eu o via - filmou o período daquela cena; somente daquela
cena em que Juçara se machucara e que seria o começo de todo o terror para
família de Ofélia. Inesperadamente, o celular tocou. Uma voz de homem ordena
para Maicon pedir ajuda! O garoto, trêmulo, emudeceu. Sentiu o seu corpinho
gelar e a urina escorrer-lhe nas pernas. Atônito, mexendo no celular,
acidentalmente, compartilhou no facebook
aquela cena fatal que filmou até ali. Surtada, calei Ofélia com um golpe
na cabeça, levando-a a escorregar, esbarrando na moto que guardava na minúscula
área de serviço que ainda estava em construção. Com o choque, o veículo caiu
sobre seu corpo, imobilizando-a. Arrumei-me. Sem olhar para trás, sai, tranquei
a porta, guardei as chaves na bolsa,
entrei no meu carro e acelerei sem que os vizinhos me vissem. Foi assim, dominado
pelo medo, Maicon escondeu-se no quarto sem saber de quem era aquela voz que
sabia o que acontecia naquele momento. Estavam sendo ouvidos, espionados pelo
celular? Que tipo de programa seria esse? Como? Por quem? A filmagem de uma mulher, batendo em outra,
idosa, com as palavras de ofensas que eram ditas, viralizou nas redes sociais.
Nem se eu tivesse programado assim teria dado tão certo. Sem medo de revelar que tinha um celular, ligou
para o pai, que estava de vigia, e contou o ocorrido. Os amigos virtuais
reconheceram-me, dava-lhes as versões que eu bem entendia. Queriam justiça. Pepe identificou as personagens daquela postagem e
me ligou. Os compartilhamentos, os comentários e os tons de vinganças o
atordoaram. Ouvia o que se falava naquela casa através do programa espião que
instalou no celular que enviou ao sobrinho. Como pode? Que astuto! Acionou seus
contatos na cidade. Sabia: precisava salvar Ofélia das mãos dos internautas
indignados que queriam justiça. Desliguei na cara dele. Por que
Pepe não chamou a polícia? Quase
amanhecendo, Ofélia, ferida, auxiliada por Rui, experimentou os ataques
promovidos pelos internautas justiceiros, em sua casa. Pelas mãos do neto, pude, de dentro do carro,
assistir à população pondo fim aquela
casa, o que, aos seus 15 anos, não fizeram com o homem que violou a morada da minh’alma,
sujando-me o ventre. Sentia-me leve a cada pedra que lançavam contra a casa de
Ofélia. Ali, naquele baile de tiranias, valsei a música que aquela violência, sofrida
aos quinze anos, impediu-me de valsar no
baile de debutantes. Voltei para casa e banhei-me como há décadas não me limpava. Ali, senti a
vida invadir-me novamente as entranhas.
Seguindo: Enquanto Rui tentava
conter a multidão, o filho gritava. A polícia foi acionada e encontraram Ofélia
– a agressora – no local do crime. O celular do menino foi recolhido para
averiguação das cenas. Questionado –
como o instruíra – disse que o celular foi presente comprado por sua mãe. A
polícia conseguiu evitar o linchamento que a população desejava àquela filha
que, na filmagem, surrava a mãe idosa,
mas que não teve tempo de expor, ali, sua versão. Vizinhos confirmavam os
destemperos daquela mulher contra sua mãe. Senti-me realizada. Pedro Paulo e sua turma não chegaram. Levaram
Ofélia à delegacia. Traumatizada por ver sua casa apedrejada, pichada e
detonada por estranhos, Ofélia emudeceu. Mas sua mudez não era para fazer
imperar o silêncio que a protegeria, como o avô lhe ensinara. Calara-se por
medo. Juçara também foi chamada para
depor e para piorar a situação da filha confirmou a veracidade das cenas
publicadas nas redes sociais e de outras violências que sofria por ela. Menti,
aumentei os fatos sobre as violências que ela me proporcionava. Recolhida em cela comum, até que lhe pagassem
a fiança ou um advogado lhe fosse arrumado, Ofélia sentiu no seu corpo a força
da justiça promovida pelas detentas com as quais dividiu a cela. As fotos
“daquela filha” deformada pelos hematomas também viralizaram nas redes sociais.
Fato que, questionados, dirigentes da cadeia não souberam responder como aquela
violência e aqueles vídeos aconteceram e vazaram, se nenhuma detenta,
afirmaram, possuía celulares nas celas. Duvido.
Já me perdi nas partes, estou
confusa quanto a elas. Desesperada com a
brutalidade que Ofélia experimentou, vendo-a desfigurada nos vídeos, de tal
modo que ninguém a identificaria, pela
primeira vez, eu chorei por Ofélia, tão
frágil, à beira da morte. Por conta dos
dias difíceis que passou, Rui não conseguiu evitar o sumiço do gato e a morte
do hamster. Daquela casa popular, que Ofélia insistia em chamar de sua
propriedade, quase nada se aproveita. Como a sociedade é cruel! Com ajuda de amigos do trabalho, Rui arrumou outra
casa. Sofro por Ofélia e preocupo-me com
a falta de notícias do Pedro Paulo. Seu
celular, há dias, não atende. Alegando preocupação com o neto visitei a nova casa do Rui. Abracei-o, enquanto Maicon
chorava a ausência da mãe. Rui, grudado ao
celular, aguarda notícias sobre sua esposa, internada em estado grave pelos
ferimentos e hemorragias internas que apresentava. Quanto a Maicon, ele sabia o
que lhe aconteceria se revelasse quem o presenteou com o celular.
Pelas redes sociais, soube que Pedro Paulo e o
pai foram descobertos e presos a partir da perícia que a polícia fazia no celular
do Maicon, identificado como objeto de furto. Pelas redes sociais, aquela Juçara
conheceu a verdadeira morada e o trabalho do seu filho, o mais novo traficante
descoberto pela polícia, o paradeiro do seu marido e os gatos que ele criava,
quase todos com os rabos cortados. Pelas redes sociais, aquela Juçara ouviu o
depoimento do filho e sua versão sobre a filmagem que o sobrinho,
acidentalmente, postou na internet, e sobre o celular equipado para mapear os
acontecimentos na casa de Ofélia, as preocupações que ele tinha com aquela
família. Pelas redes sociais, Juçara assistiu o que seu filho escondia do outro
lado das redes. Enquanto uns
têm a sorte da dúvida, eu o azar da certeza de que não fui vingada, mas me vinguei
da forma como não deveria. A dor do vazio preenche meus dias.
Se retornar o que Ofélia terá para
chamar de “minha propriedade”? Aos que tiveram o azar da certeza e promoveram a
justiça com as próprias mãos, terão, nas redes sociais, a sorte da reparação do
estrago que promoveram à Ofélia? Atormento-me
com as próprias perguntas e sinto que
preciso ficar com minha filha, dizer-lhe coisas boas que as mães dizem aos seus
queridos, e que compreendeu que ela também é vítima daquela violência que
sofreu quando ainda era uma adolescente, uma mocinha de apenas quinze anos, que
saiu do cabeleireiro com os cabelos preparados para o baile das debutantes, que
aprendeu a contar uma história errada, a que seu pai queria, seu pai... E que
não foram duas ou três vezes apenas. Uma dor diferente que sinto, um misto de tristeza e alegria, deu-me a
sensação de ter me humanizado novamente.
Pela primeira vez sinto-me mãe da Ofélia.
Já nem sei em qual parte deste
relato estou. Vou me adiantar para
chegar ao hospital porque o desespero domina esta mãe ávida para abraçar a filha
tão carente de amor materno. Tudo o que eu promovia à Ofélia, minha filha, era
para vê-la sofrendo o que eu sofria. Era a única pessoa ao meu lado capaz de
suportar um pouco dos meus sofrimentos. Fui eu que articulei para que tudo acontecesse
como acabou, mas foi pior que o planejado. Eu sabia, mas mantinha o silêncio sobre os
serviços ilegais do meu filho e do pai dele, o estúpido que meu pai me arranjou
e que me batia quase todos os dias, mas que eu não reclamava, por vergonha. Sei que
o texto é longo, mal escrito, mas de imensa verdade sobre o silêncio que o meu
pai exigia que eu cumprisse sobre a violência que eu sofria nas garras dele e
do marido que ele me arrumou. Publico-o para que conheçam a minha história. Sentir
amor por minha filha fez nascer vida em mim e se minha filha não sobreviver, eu
também não viverei mais. Acabou para mim.
No
trabalho, o celular do Rui tocou. Ele atendeu. O hospital dava-lhe notícias
sobre Ofélia.
Autoria- Rita de Cássia Zuim Lavoyer
Um comentário:
Comentário enviado por e-mail, pela CÉLIA RANGEL.
Oi, Rita! PARABÉNS! Já é um ritual consagrado em seus textos! Há muita verdade nesse que reflete relacionamentos familiares, desagregados, pela tecnologia da parafernália excessiva que corrói todo e qualquer emocional. Há uma tecnologia tão menos complicada, a do amor, que, se bem conectada, dá frutos extremamente saudáveis. E, muitas vezes, só no silêncio é que se medita na importância do conviver entre humanos e não atracados com as máquinas! Quantas "Ofélias e Juçaras" dominadas e dominantes há no mundo atual... Famílias submissas e subjugadas... Triste.
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