Para se
sentir gente
*Rita Lavoyer*
Ela não era bela, mas inventou que poderia amar. E não deu outra. Quis se
apaixonar por um rapaz que, possivelmente, lhe daria um beijo. E seguiu
entusiasmada com aquele sonho de ser beijada.
Um encontro poderia ser a solução àquelas vertigens que a acometiam em
noites mal sonhadas. Mas... Quem era ela?
Vislumbrou um pretendente e, aficionada no seu objetivo, de tanto que ela
pedia, o rapaz cedeu-lhe atenção.
Ele não era lá grande coisa. Mas na balança daquelas necessidades o peso
completaria o leve. Ambos se equivaliam à medida das circunstâncias. Até ali
estavam empatados.
Delirava só de pensar naquele momento com o qual sonhara. Ela queria
estar radiante para aquele primeiro encontro. Quis mudar os cabelos ruins,
torná-los mais lisos, macios e cheirosos. Não tinha nada para passar naquilo
que alcunharam “ninho de chupim”, a não
ser o pedaço de sabão que era compartilhado no banheiro, no tanque e na pia da cozinha.
Procurou um meio de, naquela ocasião, estar diferente do seu ranço
diário. Não encontrava nada que pudesse diminuir o seu mau cheiro, a sua má
aparência que muitos do seu convívio insistiam em ressaltar.
Previa que ele, o seu desejado, encostaria o seu rosto no rosto dela. Ela
desejava aquele beijo mais do que a quem o daria. Precisava do beijo.
O horário do encontro se
aproximava e não havia nada que melhorasse o seu aroma, o seu jeito para aquele
instante. Com as roupas não se preocupava, iria com a única que tinha, já era
parte integrante do seu corpo cicatrizado pela infância desassistida de
presente e de futuro.
Desesperada para não decepcionar no primeiro beijo que receberia, saiu!
Ela saiu!
Não notaram a ausência dela naquele lugar onde ficava para sobreviver.
Mas deram por sua falta quando a polícia bateu à porta informando que a moça de
cabelos ruins fora presa por furtar, em uma perfumaria, um frasco de xampu.
Já era “di maior” e sem o superior estudo, numa cela de cadeia foi
igualada. Estava lotada e continuou apanhando ali também.
Retiraram-na ensanguentada e a levaram para uma sala vazia, de onde
ninguém via, nem ouvia nada.
Uma de farda encarregou-se de aumentar ainda mais o fardo daquela moça de
cabelos ruins que sonhava estar cheirosa para um beijo, o seu primeiro.
Atravessou-lhe o olho, vazando-o. O
sangue que jorrava entupiu-lhe os berros que queriam, mas não conseguiram
escapar da sua boca.
Infeliz! Ainda bem que foi vazada. Se a deixassem impune por tão hediondo
crime, o que mais poderia vir a roubar depois? Carne no supermercado para alimentar
aquele que poderia vir a ser o seu marido por causa de um beijo cheiroso, ou
remédio na farmácia para curar os futuros filhos seus?
Calavam-lhe as respostas.
Encolhida na cela, cerraram-lhe uma visão, ajudando-a a sonhar menos em ter seus cabelos cheirosos
para serem tocados antes de um beijo que ela não teve coragem de roubar, porque
o queria trocado, amado, saboreado.
Roubou o errado! Ele não lhe valeu a pena! Agora pena aí, saboreie o
amargo do xampu nos rasgões do seu corpo, enquanto o tempo lambe o beijo que
deixou fugir da sua boca!
Levaram-na para audiência com o juiz. Questionada sobre o seu crime ela
foi firme em reconhecê-los. Empoderada, afirmou serem dois.
- Doutor, o meu primeiro crime, o menor, foi desejar um beijo, o que
nunca experimentei, e me sentir gente pelo menos uma vez.
Mas o meu segundo, o maior e mais grave crime, doutor, foi perder a
oportunidade de roubar o beijo, o meu primeiro, e me sentir mulher, já que
atributos para isso a vida não me deu nenhum. Mas não era roubado que eu o
pretendia, doutor...
Por favor, o senhor pode me encarcerar numa prisão? Porque, doutor, a
vontade de cometer esse roubo está crescendo demais dentro de mim, e se eu estiver livre, conseguir roubar um beijo e
experimentar o que é ser mulher, talvez eu me torne perigosa, criminosa, nociva
demais à sociedade de cabelos bonitos e cheirosos que não precisa roubar um
beijo para sentir o que é ser gente pelo
menos uma vez na vida.
E a audiência continuou...
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