COZINHA DE MEMÓRIA
Crônica classificada em 2º lugar no concurso AMHAL -
Academia Mogicruzense de História, Artes e
Letras. 2020
O tempo ganha velocidade jamais
vista! Há poucas décadas – diz minha mãe, lembra-se ela tão
bem!! – havia nele a morosidade dos tic tacs dos relógios de parede, atentos à
conversa da família em torno de uma mesa comprida em cuja cabeceira
sentava-se o avô, para quem o primeiro prato, bem cheio, era servido; portava
ele, sem nenhum esforço, uma aura de respeitabilidade, bordejando ao
concreto.
Um tempo em que alpendre era vocabulário vivo nas frentes das
casas, chamarizes de vizinhança palradora, um verdadeiro jornal de
notícias fresquinhas. Ah! E nos fundos? Terreiros de terra vermelha cor de
pitanga, com árvores frutíferas, sombras debaixo das quais adultos e
crianças se misturavam com os animais domésticos e afogavam as tardes nas gulodices que lhes
abarrotavam o estômago, simulacro de obesidade futura. Culpa das avós, das tias, das madrinhas, das quituteiras que preparavam
os pratos na véspera, e que disfarçavam, com seus olhares dissimulados, as
competições que promoviam com suas culinárias: espírito das lembranças e
necessidade de revivescimento em muitas memórias, porque comer é presente.
Disso, sei apenas por ouvir
dizer. Como também ouvi dizer que meu bisavô, pai da minha avó e de muitos
outros filhos, deixou quase nenhuma herança. E a sobrevivência passou a ser uma
batalha diuturna. Nessa luta o trabalho foi o único instrumento que meus avós e
minha mãe carregaram como legado.
Porque comer é presente procuro por minha
mãe nos banquetes da minha história. Por ela, preciso me lembrar que sinto
fome. Mas não é fome por ter ficado algum tempo sem comer ou porque faço
dietas, muito menos por causa do estirão do meu crescimento.
E,
quando afoita, engulo sem apreciar a comida que mastigo, que o meu organismo
mecanicamente digere, processando-a, as engrenagens do meu automático devoram a
fome que tenho daqueles tempos sobrevividos com minha mãe.
Sem
essa fome sinto-me atemporal e desumana. Esse estágio esvazia o sentido teórico
da minha memória e por um longo tempo descuido-me nos fast-foods da vida. Sem nenhuma seletiva ajusto-me ao senso comum:
sem tempo, sem história, sem lembrança e pior, sem a minha fome especial: daquela
que deseja se alimentar da presença dos meus avós, nos feriados especiais, na
casinha da minha mãe, sem alpendre, sem terreiro, sem árvores frutíferas, mas em
volta da mesinha simples onde consagrávamos os alimentos com os quais ela nos servia,
após o sacrifício que fazia para comprá-los e, com prazer, os preparava.
Tenho
fome da magia que havia em minha mãe, em transformar arroz cozido, misturado
com farinha de mandioca e ervilha, nesse sabor prazeroso que ainda permanece vivo
no meu paladar.
Tenho muita fome das sensações que
seus pratos me proporcionavam: do aroma do feijão que me abria o apetite, mas
que eu, algumas vezes, não comia, porque vislumbrava, entre um
grão e outro, a cebola que ela usava para temperá-lo; da fatia do queijo
mineiro, que ela adorava pôr sobre o macarrão quentinho, para derreter, mas que
eu não comia porque não gostava do cheiro; da clara crocante do ovo, só, porque
não me simpatizava com a cor da gema. Daquele pão-de-fubá com cobertura
de leite com chocolate, que delícia! Da água fervida com
açúcar que nos oferecia antes de dormirmos.
Tenho
fome da sardinha que ela tirava da lata, limpava e dividia entre os três filhos
para comermos com pão, aos sábados. Ouço até agora meus dentes trincando a
casca do pão e minha boca se enche d’água. Quanto conforto!
Hoje
tenho a mesma fome que minha mãe tinha de alimentar seus filhos e de sentir as
sensações que os alimentos produzidos no universo das mãos dela, registrados em
minha memória, me ensinaram.
Por
isso preciso me lembrar de que essa fome merece ser nutrida e alimentar-me dela
torna minha mãe figura presente na cabeceira da história alimentar que ela
preparou para mim e da qual continuo me saciando.
Autora-
Rita de Cássia Zuim Lavoyer
2 comentários:
Então, costumo dizer que fazer pão é transformar trabalho em amor... Esse amor é o alimento para a fome de sua crônica, espero... Parabéns pelo prêmio e obrigado por compartilhar.
Muito obrigada, Dilermando. Foi enorme prazer vê-lo por aqui. Grande abraço.
Postar um comentário