CONTO CLASSIFICADO NO 34º CONCURSO DE CONTOS CIDADE DE ARAÇATUBA, 2022.
O cortejo da Maria Rosa
Rita de Cássia Zuim Lavoyer
Aquela imagem, arbitrariamente, saltou
dos recônditos de sua memória e pôs-se a ziguezaguear diante dos seus olhos,
deixando-a tonta, quase sem sentido – como uma tormenta, pensou Margarida. Essa imagem não lhe surge por
acaso. Quando vem, apresenta-lhe novos personagens com marcas cada vez mais
profundas e dolorosas. Uma fotografia vista pela lente da sua
consciência. “Minha consciência! Tão minha!”. Margarida carregava um imbróglio
de sentimentos dentro de si, que não conseguia resolvê-lo.
Exausta, não reunia condições para assimilar
como chegou ali, naquele barraco. Mas sabia perfeitamente de onde vinha.
Ofegante, entrou.
Encontrou Maria Rosa estendida no chão. Ajoelhou-se
e descansou a sua mão esgarçada sobre ela. Parecia, mas não podia ser
considerada velha. Era moça. Com apenas
32 anos, tão destroçada pela dura vida e pelos sonhos que não se
confirmaram. Estava colorida ainda. O
roxo e o vermelho prevaleciam sobre o preto, cada cor com seu respectivo
pigmento. Aquela mãe não entendia de
arte, sequer cogitava como combinar as cores em um trabalho artístico, contudo
sabia de que forma se procedia para registrá-las em um corpo. Classificou
aquele mau resultado estendido no chão como trabalho bem-feito e bem
finalizado, que ela não queria ver, mas que lhe
saltava aos olhos e se estendia dentro dela, uma cinzenta nódoa que a amargurava.
Margarida
conseguiu enxergar na imagem, que não aceitava chamar de lembrança, aquela filha
em um passado recente, jovem de pálpebras caídas, olhos embaçados exibindo
vasos avermelhados ramificando no branco dos seus globos
oculares. Olhos tão tensos e secos que, durante a vida,
dificultavam-na enxergar mais distante, além da sua realidade. Assim, ela a
enxergava. O lenço esfarrapado que trazia amarrado na cabeça escondia as
cicatrizes conquistadas nas fugas e nas quedas dos degraus que fizeram parte do
processo de construção da sua filha, figura capturada da imagem transgressora
que lhe ocorrera e que insistia em lhe perturbar os sentidos. Maria Rosa mostrava um sorriso forçado. Exibia falhas
nos dentes amarelados que seguiam para o apodrecimento. Vestia camisa branca
estilo baby look, curta, com
colarinho duro e cinco botões de massa que cabiam perfeitamente em suas casas.
Uma saia simples de cor cinza que lhe caía bem, pois não se dava ao luxo da
obesidade. As duas peças formavam nuance interessante com sua pele negra, um
conjunto que poucos invejariam. Seus chinelos com correias diferentes calçavam
os pés que aprenderam e desaprenderam os caminhos do bem e do mal. As fissuras
calcificadas em seus calcanhares denunciavam a precariedade de cuidados
básicos. Acima do tornozelo direito,
uma úlcera varicosa produzia água avermelhada, que vazava pelo curativo
encardido que tentava escondê-la. Margarida via-a, naquele estado passivo,
psicologicamente deformada.
Boa parideira. Aos quatorze, Maria Rosa deu à luz sem soltar um
grito, e continuou assim. Margarida continuou vendo sua filha na imagem. Rodeada
pelos oito filhos, por dois cachorros e por um homem – “aquele homem” responsável por impedir uma possível ponte entre
mãe e filha – , de olhar apertado, de cenho
franzido e lábios espremidos, de cabelos
sebosos penteados para trás, deixando ver a longitude de sua testa de pele morena,
pai de algumas daquelas crianças de olhares
lacrimejantes, descamisadas, barrigudas, umbigos estufados e com os pés no chão,
encostados em um barraco de paredes meio
de tábua, meio de lona que também era usada como telhado, meio de papelão, meio
de outdoor de um político da campanha passada, ironicamente anunciando construções de casas para a população
carente: construção fiel de incertezas, de confusões e de fragilidades, fincada no terreno enlameado,
em que mal caberiam dois corpos, mas como as fomes eram abundantes inquilinas,
ali, esquálidos humanos se amontoavam perfeitamente. Margarida tentava não
imaginar o sumo infeccioso que podia escorrer do abraço “daquele homem” de madeira
apodrecida que os vermes haveriam de comer. Margarida paria intervalos entre
uma angústia e outra.
Ela olhou em volta, tudo em silêncio
e tão sem cor, apesar da arquitetura psicodélica do barraco. Havia
quinquilharias entulhadas. Num espaço separado por um pano pendurado em uma
corda, simulando uma cortina, havia uma cama, colchões rasgados, bermudas, camisetas
e chinelos esparramados pelo chão forrado por papelão. A claridade que
atravessava os vãos das “paredes” encontrava quase nada onde pudesse se chocar
e produzir uma sombra sequer. Sobre uma tábua que se equilibrava em um pedaço
de cadeira havia um bule, pratos sujos e vazios cobertos de moscas e formigas aguardando
quem lhes passasse água. Nenhuma música, nenhum álbum de fotografias. Uma mesa
dobrável de bar, coberta por uma toalha de crochê vermelha, amparava uma
garrafa pet com flores do campo querendo água para terminarem seu curso
com dignidade. Margarida levantou-se, tomou-as,
apertando-as entre os dedos. Entendeu uma significante beleza naquela
decoração. Pausou seu pensamento
atordoado: “Ela punha flores em uma garrafa. Houve sonho nesta pocilga. Agora,
há apenas uma morta rodeava por dois cachorros e eu.” Margarida coçou os olhos que ardiam. Engoliu
em seco uma vez, outra e outra para reprimir as lágrimas, ajudando a descerem
os nós entalados em sua garganta. “Ela desejava disto
aqui um lar”.
O passar dos anos daqueles moradores, ali,
naquele barraco, havia incrustado no ambiente
cheiros de suores ressecados, incorporado a cânfora, urina, aguardente, fumo e
querosene. Aquela mãe interpretou aquele
mundo pelo aroma.
Forçando o pensamento, Margarida
decifrou, na imagem arbitrária que preferia chamar de pesadelo, lobisomens
crescidinhos. Uns já pegos pela polícia, outros alcançados por balas perdidas.
Alguns dos que sobraram continuavam assombrando, diziam. Os miúdos,
quando não estavam na creche, distraiam-se nos semáforos. Havia os cachorros que
pareciam fiéis àquela filha, mas sempre rosnavam feio quando viam a mãe dela, e
ganiam, amiúde, uma tristeza adestrada pelas circunstâncias, de arrepiar os
ossos, os próprios e os alheios.
Naquela ocasião em que Margarida e Maria Rosa
estavam, apenas os dois seres como confidentes. Rosnavam baixinho, como um
choro.
Abaixou-se novamente. Com a ponta
do seu polegar craquelado pela labuta de limpar a sujeira de muitas famílias,
para deixar a brancura do ambiente delas cheirando a sabão para os finais de
semana, Margarida friccionava a pele de sua filha, tão afetiva, quase lhe
arrancando a cor. Era preto com preto, porque não aprendera outra expressão
para “preto”. Negro, afrodescendente, dizia ela, mordendo os lábios, não
alterava sua identidade, tampouco diminuía a sua sina e a de sua herdeira.
Sobre o roxo, imperceptível como identidade, mas gritante pela maior negritude
da pele, e o vermelho não tocou. O que não conseguia tocar, tentava fazê-lo
pela inconsciente fé no seu Deus. Num delírio viu em Maria Rosa uma morada
quieta, desolada, e vagou lentamente nos corredores que havia dentro dela.
Conforme a adentrava, seu fígado fisgava sensações agudas que lhe secavam a
boca. Pegou-se distraída, sendo
observada pelos cachorros.
Fixou o pensamento mais
profundamente na imagem que a incitava para ler sua subjacência, saber mais
sobre aquele mundo e as práticas que trouxeram a sua descendente, tão expropriada,
àquela situação. Massageou seu pescoço, precisava dissolver os nós de
sentimentos que insistiam brotar em sua garganta, botá-los goela abaixo. Com a
boca seca, não tinha força para mover as engrenagens que a ajudassem engolir
qualquer coisa.
Queria reunir elementos e, valendo-se
de suas experiências, formular o próprio discurso, dizê-lo em voz alta a si
mesma, repetidas vezes, até compreender os percursos que construíram tanta
miséria, registrada naquela realidade morta pintada de preto, de roxo e de
vermelho, sobre a qual sua mão voltou a descansar. E para a sua
memória, a imagem que a atormentava lhe fora poderosa aliada.
Fechou os olhos e deixou
os detalhes remontarem sua consciência. Aos poucos, a relação entre a imagem e
ela ia se estabelecendo. Aterrorizou-se pensativa.
No discurso não verbalizado que ia
construindo não havia ações, porém ouviu dele acusações sobre sua ausência e
sua omissão na formação da filha. Foram esses elementos que contribuíram para
que a vitimada passasse pelas desgraças pelas quais passou?
Por instantes,
não entendeu as razões de a imagem lhe dizer tantas coisas, já que a arrastava
escondida e muda há anos. Embora os códigos fossem brutais, a interação entre a
emissora e a receptora foi mantida e a mensagem compreendida. Por que somente agora a interpretou?
Faltou-lhe coragem para traduzir os coloridos que a filha trazia desde quando
se juntou a tantos homens, e “àquele”, que lhe jurou um barraco melhor? Ou somente ela tinha medo e fugia da situação em que sua
filha sempre se envolvia? Os ganidos dos cachorros eram implicância com sua pessoa?
No silêncio que havia ali,
apenas entre mãe, filha e os animais, capturando aquela imagem intransigente
que lhe perpassava a lembrança, sua cria lhe pedia socorro, que foi ouvido
apenas agora, tardiamente. Escutou a própria voz lhe dizendo,
repetidas vezes, que a rotina de hematomas e afins fora pincelada pela falta de
recursos, de oportunidades, de estudo, de emprego, de dignidade, de família, de
referência, de estrutura, de amigos, de amor, de pertencimento e pela sobra de medo, de fome,
de necessidades e
de sua herança genética. Riu, quase uma gargalhada,
por saber decorado os termos com os quais classificavam as infelicidades
dos pobres como ela e do eufemismo que um dia aprendeu, sabe-se lá onde:
“negro”, preto não; e
da emblemática “Vidas Negras Importam”, que impregnou em sua memória.
Aprofundou seu
olhar nos olhos dos dois fiéis tristemente postados ao lado de sua proprietária
e, naquele momento, entendeu a simbiose que havia entre eles, e a comunicação
que os cachorros tentavam manter, ganindo, quando ela chegava. Eram os únicos que expressavam
verdadeiramente carinho e atenção por aquela criatura morta.
“Pobre menina!
A única que pari, porque no meu corpo não permiti que nenhum outro homem
tocasse. Fui surrada por essa raça somente uma vez, com força suficiente para
excluí-lo sem deixar dele nem o nome para lembranças. Você, filha, quantas
vezes foi tocada com os mais variados instrumentos da violência? Não consigo
mensurá-la nas suas cicatrizes e nos coloridos que insistem em se destacar na
sua pele preta, tão escura quanto a nossa história.”
Deslizou sua mão até a altura do
coração da filha na intenção de esquecê-la ali. Sentiu umas batidas.
Atormentou-se, aumentando a pressão no seu peito, há muito,
sofrido. Confundiu sua pulsação com a possibilidade de o órgão da
falecida, tantas vezes violentado, voltar a bater, roubando dela a única
oportunidade de liberdade que a vida lhe oferecera. Foi o medo dessa
possibilidade que quase a fez chorar. Deixou-se vencer por um polegar de razão. Sabia que aquele corpo ela
não poderia ocultar.
Arrastou-se e
apoiando-se em seus joelhos desconjuntados, ergueu-se, encostou sua têmpora na “parede”
de outdoor e deixou-se atordoar por todas as leituras interpretadas
naquela imagem. Viu o chão correr sob seus olhos e, intempestiva,
arrastou daquele território de memória o corpo da filha. Sem usar muita força, trouxe
abaixo toda a vulnerabilidade daquele barraco colorido, igualando-o ao terreno
enlameado sobre o qual fora fincado. Os nós na garganta eram grandes para lhe
permitirem gritar, pedir ajuda. Forçando a passagem de ar em suas narinas, no
desespero de poder respirar e pôr fim àquela história, trouxe junto o cheiro de
especiarias de origem africana e de feijão
temperado no alho que se espalhava naquele lugar, e sua boca encheu-se d’água. Margarida conseguiu engolir direito como há
tempo não fazia. Girou em torno de si e sentiu que acima desses cheiros pairava
o aroma de flores do campo e não resistiu a esse encanto.
De repente,
olhos e ouvidos daquela vizinhança alheia aos barracos daquela morada se
abriram. A imagem daqueles entulhos e do
corpo de Maria Rosa foi ganhando olhares curiosos. Fotos foram tiradas por
celulares de pessoas de todas as cores, indiferentes à cena. O vozerio daquela
gente soou-lhe melodioso. Deixou-se seduzir pelo saudosismo e encheu-se de
expectativas.
Viu que se
achegavam os lobisomens crescidinhos que restaram. Lembrou-se
de que havia, ainda, os miúdos dos semáforos. Com quem ficariam seus
netos? Olhou suas mãos e as
sentia mais cansadas ainda.
Lembrou-se também “daquele
homem” e do quanto aquela madeira podre era pesada. Um bicho. Exterminou nele os
genocidas de sua raça. Expurgou ali o imbróglio de sentimentos que até então
não conseguia resolver. Enfim, fez com cautela, de forma a não deixar
dele nem o nome para lembrança. Reuniu coragem
e condições de se lembrar de onde vinha quando chegou ao barraco. E
seu peito tornou-se opresso. “Por que
não cuidei dela muito antes?” Contrita questionava-se sobre o mérito de sua ação.
Caminhou em direção aos netos
que chegavam. Abraçando-os, explicou-lhes o ocorrido. Por eles, decidiu, reuniria forças para tirar-lhes o estigma de lobisomem que as circunstâncias lhes
impingiram. Levaria-os para o seu barraco. Ela os cativaria. Sim! Pediria
adiantamento às patroas. Começar pelo estômago é estratégia apreendida para
uni-los a ela. Tornara-se seu plano de
vida. Compraria um vaso, colocaria
flores e o deixaria sobre a mesa, onde comeriam reunidos feijão temperado com
alho entremeado com comidas africanas que um dia aprendera a fazer. Banharia e
vestiria dignamente os netos. Entendia-os, agora, como a herança que a filha lhe
deixou.
Ligações foram feitas e
chegaram ao local elementos que colocariam ordem naquele evento, levando aquela
calada narrativa ao seu desfecho. Enquanto peritos fotografavam a cena do
crime, aos que a questionaram, Margarida respondeu apenas que quando chegou a
encontrou morta no chão do barraco. Passou as características “daquele homem”.
Não careciam muitas investigações para confirmar que o sangue ressecado no
corpo da vítima e vestígios encontrados sob os restos do barraco comprovavam a
veracidade da declarante. O silêncio cúmplice da branquitude que investigava o
caso sugeria um possível processo arquivado.
Ela,
que estava seca, humanizou-se. As
lágrimas que evitara caíram durante o episódio. Qual um caleidoscópio,
coloriram-lhe os olhos e, com o coração batucando em seu peito, viu se dissolvendo
as partículas daquela filha, permitindo desaparecer sob aquele céu a culpa que ela própria se
atribuía por sua negligência com aquela família. Deixou-a ir. Livrara-se daquela
escravidão. O veículo de sirene ligada imprimia velocidade. Somente as duas
fiéis criaturas, correndo e latindo, seguiram o cortejo da Maria Rosa rumo ao
IML. Margarida espremeu os olhos para enxergar, até que o carro fugiu do seu
alcance. Sentiu seu peito comprimido abrir-se para agasalhar novo ar, que
ela precisava e merecia. Sua herdeira estava livre! Não se preocupou
com os cachorros. Sabia que eles a encontrariam, quando necessário.
Sua
primeira ação para aquele inventário seria preparar “aqueles bens” para o
sepultamento da mãe deles, tão logo o corpo fosse liberado. Respirou naquele instante um amor de mãe e de avó, que durou
pouco.
Por
destruir a cena do crime, foi levada à delegacia para depor. Pediu para que
seus netos a acompanhassem. Queria-os junto dela, conservando vivas suas esperanças
de construir novas imagens no seu coração e na memória deles. Afinal, as vidas
dos seus netos, que agora lhe pertencem, importam.
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