Texto selecionado para compor a coletâneo sobre Roteiros adaptados, Edital Editora Persona.. Meu texto foi baseado no filme da Barbie.
Barbie, uma boneca
utilitária
Rita de Cássia Zuim Lavoyer
Filme : Barbie
– Dia 09 de março de
1959 foi o dia do lançamento da Barbie. Atualmente, ela tem 64 anos, sabia, vó?
– Sabia que ela nasceu no
mesmo dia e ano que eu? O que nos diferencia é que ela não teve pais, nem
filhos. Nunca trabalhou para comprar comida. Talvez seja por isso que ela é tão
magrela.
– Vó, a senhora é
exemplo de uma mulher recalcada.
– Insultos dessa natureza não me atingem, minha netinha. Ah,
tenho uma boa e uma má notícia para lhe dar.
Segure a boa: amanhã não vou faxinar na casa da “madame Bárbara”, sua
xará. Agarre a má: ela me dispensou. Logo não terei a “graninha” que lhe prometi
para ir ao cinema com suas amigas assistir ao filme da Barbie.
– VÓ! QUE VOU FAZER?! JÁ
COMBINEI COM A GALERA DE IRMOS AO SHOPPING ASSISTIR O FILME DA BARBIE!! ARRUME
EMPRESTADO!
– Não grite, menina.
Aprenda que não é assistir “o filme”, o correto é assistir AO FILME!
– NÃO PRECISA GRITAR
COMIGO! VOU ASSISTIR A BARBIE! DÁ UM JEITO DE ME AJUDAR! Por favor, vovó?!
– Lembro-me da sua festa
de aniversário de oito anos. Nem emoção sentia quando abria os presentes que
ganhou. Sabia que dentro das caixas havia a mesma coisa: Barbie. “Essa eu já
tenho, né mãe?! Você repetia. Sua mãe dizia que todas eram bonitas, que você se
divertiria brincando com elas.
– Credo! Isso faz quinze
anos.
– É importante relembrar,
Bárbara. Quando as pegava para brincar era uma cabeça para um lado, um corpo
para o outro, os fiapos de cabelos loiros, ruivos, pretos se amontoavam no
chão, enroscavam-se em meus pés. Eu ajudava você a passar condicionador nos
cabelos delas para desembaraçar. Algumas nem rastelos davam conta.
– Ah, vó, gostoso era
trocar as cabeças delas, colocar no corpo de outras.
– Qualquer um pode tirar as
cabeças das Barbies e colocá-las nos corpos de outras sem problemas. As partes
são iguais, o que as diferencia é a cor de cada uma. Se colocar uma cabeça
ruiva num corpo negro, cabeça branca em corpo moreno não faz diferença. Lavar
as roupinhas delas somente com escova de dente. Isso não é incrível?
– Não vejo mais graça,
vó!
– Mas deseja ir “com a
galera” assistir AO filme da Barbie, estou certa?
– Certíssima! Vai me
arrumar o dinheiro?
– Quando a sua mãe
chegar da escola, peça a ela.
– Você sabe que
professor recebe no início do mês. O filme é no próximo sábado, final de mês,
quando minha mãe está sempre sem dinheiro, entendeu?
– Entendo há anos. Um
dia, sua mãe decidiu fazer uma dinâmica com os alunos. A esperta pegou um saco
de lixo preto, grande, enfiou as magrelas dentro dele, juntou com outras bonecas
gorduchas de pano. Queria trabalhar com as crianças o valor do diálogo, do
silêncio, do abraço e outros que foram surgindo no decorrer da brincadeira. Ela
me disse que as bonecas de pano, gordinhas, surtiram mais efeitos, atingindo o
objetivo do trabalho. Elas enchem os braços de qualquer criança. Além do mais,
por mais que tentassem, não conseguiriam arrancar-lhes as cabeças, eram fixas
ao corpo. As crianças abraçavam-nas, trocando os seus cheirinhos de gente que
cada uma trazia em si. De repente – ela me contando eu ria de sacudir a barriga
–, uns menininhos se engraçaram com as Barbies. Um deles, agarrando uma pela cabeça, foi
direto com os pés dela no olho do coleguinha.
Se a sua mãe não interviesse a tempo, aconteceria uma tragédia
irreparável naquela escola. Muitas conclusões ela, as crianças e eu tiramos
daquela aula. “Bye, bye, Barbie! Nunca mais” – ela disse! Mas eu não.
Apropriei-me desse aprendizado. Achei que as magrelas poderiam ter
utilidade. Se é proibido dar brinquedos
com motivos bélicos às crianças, dar Barbies pode. Nunca saio sem uma magrela dessas na bolsa,
principalmente quando vou ao banco ou à lotérica pagar minhas contas.
– Vó, que enrolação
é essa? Vai me arrumar o dinheiro para ver o filme ou não?
–
Quem vai?
–
Não vó, só algumas amigas da faculdade.
–
Perguntei quem vai. Não se os “Kens” vão!
– Vou
com minhas amigas! O Ken é o vilão da
história, sabia?
– Hum, interessante. Mas
aprenda, traga sempre uma Barbie ao seu alcance. Se você for surpreendida por um marginal
qualquer enfie, sem dó e com toda a sua força, os pés dela no olho do bandido.
– Vó, isso é
conselho que se dê a alguém? Não se incomoda em ser uma má influência à sua
neta? Vou contar tudo para minha mãe, quando ela chegar da escola.
–
Ah, é verdade, você, apesar de ter seus vinte e três anos ainda se acha uma
garotinha. Mas vou ensiná-la, mesmo
assim. Retire os sapatinhos de bicos
redondos que elas têm. Os pezinhos delas são lâminas fatais. Você derruba o meliante
e ainda corre “pra galera”. Passe fita adesiva no pescoço delas para não
perderem as cabeças quando você for dar o golpe de defesa. Entendeu?
– Que
horror!
– Depois que apreendi
essa lição, espero o ônibus tranquilamente no ponto. Numa investida ataco com Barbie
nos olhos dos atrevidos.
Bárbara apertava os
dentes para não discutir com a avó, não podia contrariá-la.
– Vó, entenda. O filme aborda
a vida da boneca no mundo real. Na história, a Barbie busca por aprendizados, é
um exemplo que mexe com nossos sentimentos e nossas emoções. Circulam nas redes
análises de psicanalistas dizendo que o longa metragem quebra com estereótipos,
afirmando que a vida não é uma ficção e que incentiva mulheres a não seguirem
os padrões estabelecidos pela sociedade machista. Histórias assim nos tiram do lugar, nos
ajudam a amadurecer.
– Nossa, eu precisava mesmo ter nascido no mesmo
dia, mês e ano dessa boneca! Isso não é coincidência. De fato, esse filme
precisava acontecer para eu ouvir isso, ver você sair da caixa. Escuta! Quando você já não queria mais brincar
com suas Barbies, eu as guardei. Como sou uma vovozinha que gosto de
diversificar, saio cada dia com uma, quando preciso. Posso dar uma para cada
avó das suas amigas, o que acha?
– E as bonecas de pano,
guardou também? – Perguntou toda
emburrada.
– Não, essas eu
descartei, estavam fedorentas. Eu ensino as avós de suas amigas como usar as
magrelas. Deverão carregá-las uma em cada mão, para quando forem ao banco,
receberem suas aposentadorias com segurança. Na intuição de estarem sendo
perseguidas, nem precisarão mirar. É só golpear para trás, qualquer lugar que o
pé da boneca entrar o corte será profundo. Ainda que não seja mortal, o
assaltante certamente não escapará de uma hemorragia. Você não acha que a minha
história daria um bom filme? Hã?
– Vó, não se vai mais
aos bancos sacar dinheiro, elas têm cartões bancários, fazem transferências,
usam pix. Se liga na real, essa sua “invenção para segurança” está bem ultrapassada
para as avós das minhas amigas.
– Você que pensa! Cada
vovozinha das suas colegas terá uma boneca em sua defesa e não correrá o risco
de ser condenada por porte ilegal de arma. Diga se sua avó não é “manera”? Ah, garota! Peça um Uber enquanto pego minha
bolsa. Vamos ao banco. Vou sacar o dinheiro para lhe dar.
– Que é isso, vó? Não
pode me passar um pix?
– Claro que não. Ir ao
banco é uma oportunidade que não desperdiço para usar uma das minhas Barbies. Vamos,
menina! É a chance de você aprender, no mundo real, a usar uma de suas
ex-bonecas. Tomaremos um sorvete e
voltaremos de ônibus, no final do dia. Você vai sentir o que é entrar em uma
caixa lotada de gente cansada da vida real que leva. Ali não há Kens vilões nem
Barbies mocinhas. Há alguns trabalhadores que sonham, por um dia apenas, viver
no mundo da fantasia. Experimentará grandes
emoções. Dentro daquela caixa de rodas e que solta fumaça nada é fictício.
Sabia que não podia se
alterar com sua vô, dependia dela.
– Acho que esse filme vai
mexer comigo. Vou sacar um pouco a mais. Desejo assisti-lo.
– Comigo não!
– Por que? Não é para
mexer com as emoções que o filme foi produzido? Vou levar sua mãe também. Se
nós não formos você não vai, não lhe darei o dinheiro. Sua mãe precisa e merece
se divertir, quem sabe se inspira em uma Barbie baixinha, gordinha e empoderada
e se aceita com é. Obrigada, minha querida. Andar com a juventude é o melhor
que os adultos devem fazer. Ainda bem que você existe!
– O Uber chegou! –
Bárbara disse rangendo os dentes.
– Coloque essa boneca na
bolsa. Prevenir ainda é o melhor remédio.
– Que jeito mais
antiquado de falar.
– Antiquada é sua
postura, pedindo dinheiro da avó para sair com a “galera”. Quer sair comigo ou não?
– Entra logo no carro!
– Qual sorvete vai querer?
– Um Milk Shake da Barbie, oras.
– Que falta de
criatividade, menina. Bem, vou experimentar um desse. Talvez eu goste. Quem
sabe.
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