Crônica selecionada, pela Editora Persona, para compor a Coletânea de Cronistas Contemporâneos 2024.
A construção de uma personagem
Rita de Cássia Zuim Lavoyer
Um aspirante a escritor sonhava
algo interessante para pôr em uma história que intencionava escrever. Iniciou
relatando sobre uma terra escavada. Em seguida, uma água que jorrava da fonte
de sua imaginação. Embora achasse que ambos os elementos fossem a gênese da sua
criação, não sabia de que forma encaixá-los à narrativa, nem como encobrir
a vala de onde retirou a terra.
Deslizou o seu grafite
misturando um elemento ao outro no intuito de conseguir uma imagem com a
mistura dessas duas substâncias. Desta conjunção surgiu aos seus olhos uma lama com
a qual desejava marcar o branco do papel. Foi revolvendo aquela mistura com a
ponta do seu lápis, permitindo-a disforme em suas conformidades a fim de ele
mesmo aperfeiçoar-se em sua atividade. Em cada linha que a sua figura se fazia
presente o tema, ainda sombrio em seu consciente, desmoronava.
Percebendo-se inábil para o
ofício, tratou de se especializar. Prometeu que faria a sua história. Projetou
e traçou sua planta baixa, planejando o seu engenho com instrumentos que lhe
eram empíricos, proporcionando à celulose vibrações as mais variadas entre
sonhos e delírios amassados, enchendo de papéis um cesto do canto. Deixou a sua
ideia se concretizar, terra e água resultaram em um barro consistente sujeito a
ser moldado.
Entendendo-o sem
coesão, buscou recursos na ciência da modelagem. Naquela folha, o carbono
cristalino formava uma silhueta lexical grotesca sobre um fundo branco, deixando à vista uma
lógica incoerência no papel do sonhador com a sua matéria.
Na ânsia de botá-la
em pé, o aprendiz esmerou-se na arte da marcenaria. Com uma lâmina, lascou a
madeira do seu lápis e criou uma coluna para aquela abstração quase uniforme,
possibilitando-a nominá-la objeto do seu plano estático. Dado a escultor,
talhou-a, desobstruindo aquela figura da sua memória, possibilitando
concretizar o pilar da sua construção.
No canto da página, um arco-íris
de palavras era pincelado pelo pintor que o artista se permitiu ser, colorindo
as interrogativas que surgiram no decorrer do ofício, e o sopro do agente sobre
as cores, para secá-las, preenchia o significado daquele significante,
dando-lhe volume, descrevendo um perfil feminino sob o ângulo da visão dele.
Arquitetou diversos códigos e
outras mãos de obra afloravam-se nele para decorarem o interior daquele
ambiente feminino escrito com um lápis. Quanto mais o seu projeto ia tomando
forma, muito mais aquela personagem deixava de ser oculta e se determinava naquele
roteiro propositalmente destinado a ela.
Deixando a condição de aprendiz,
o projetista já não a queria mais coadjuvante. Signos e mais signos cristalinos
fantasiavam a autoestima daquela sua projeção e a redação já possuía começo e
meio definidos. O clima foi surgindo à medida que o redator harmonizava as suas
construções sintáticas, dando dinamicidade à sua personagem.
Encaixados muitos fragmentos da
arte naquela estrutura, o dono daquela mão que dominava o objeto de escrever,
gravou-se primeira pessoa naquela narrativa e na sua cria depositou todo o seu
ego. Ainda impalpável e imaculada pela falta de um passado real, ele a gerou e
pariu o enredo de uma história residente no imaginário dele, apresentada em
relances.
Vendo o seu objeto crescendo-lhe
diante dos olhos, operando uma disjunção entre o seu sonho e a vida da sua
criatura, o escritor puxou-lhe as rédeas, imobilizando-a entre uma linha e
outra que riscara na folha. Transformada em protagonista, não tendo afinidades
consigo mesma, ele inventou que ela deveria se apaixonar.
Sem conflito nenhum com a sua
condição, num instante, ele rascunhou outro personagem à sua imagem e
semelhança denominando-o “mocinho”. Deu-o a ela em casamento de papel passado à
força do seu punho, sem não antes escrever um sorriso feliz nos lábios carnudos
daquela mulher que ele criou. Depois de uma leitura refinada, assinou:
Propriedade de Causa.
Sentindo-se desgostoso com
aquele desfecho e não conseguindo mudar aquela imaterialidade, relatou pingos de
lágrimas sobre a história e escreveu “fim”. Amassou o papel, fez com ele uma
bola e o jogou no cesto do canto, falhando na sua performance. Travestido de
vilão, abaixou-se, juntou todos os amassados, pôs fogo e assistiu à sua
inspiração esvair-se no ar.
Ansioso com a carbonização das
suas letras, enfiou o rosto naquela fumaça, aspirando-a toda, na tentativa de asfixiar-se
com a própria criação.
Não conseguindo tal intento, quis
reconstruir toda a história que trazia na memória. Porém não se atentou para o
fato de que a cada movimento que ele promovia para a construção da sua
personagem, do pó que dela se espalhava, criava-se, involuntariamente, um
narrador muito próximo das alegrias e das angústias daquela mulher e que sabia,
mais que o escritor, o que ela pensava em seu íntimo.
Quando ele tentou trocar o “fim”,
uma voz onisciente e intrusa anunciou um “tiro no peito”, encobrindo a vala de
onde a terra fora retirada, direcionando o desfecho de uma história prometida. Para
evocar emoções, a nova reconstrução ficou exposta, deixando o papel do escritor
e as agruras de sua criação sujeitos, como sanção, a discursos
figurativos.
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