Sabor de Pimentão.
Exploramos o mundo à nossa volta com os nossos órgãos dos sentidos. Eu sei que consigo sentir através da minha visão, saborear com o tato prazeres e angustias. Quantos remorsos degustamos ao engolirmos sapos que cheiram tão mal aos nossos estímulos, mas os fazemos, calados.
Éramos crianças. A turma ir a pé à escola. As ruas eram enfeitadas com uniformes, uns brancos; outros nem tanto. Íamos rindo, brincando com o outro sem mesmo saber quem ele era. Aglomerávamos conforme a escola se aproximava. Nas bifurcações, uma leva juntava-se à outra. Em determinada altura do caminho, eu sabia que iria encontrá-lo. O nome dele nunca soube. O conhecíamos apenas por “Pimentão”. Era menino alegre, divertia-nos até chegarmos ao pátio da escola. Ele me causava alegria. Era simples somente pelo fato de ser. Bastava-se.
Não foram nem uma, nem duas vezes que toda a escola ouvia gritos de alunos, porque estavam apanhando das mestras. Na minha sala, eu tremia junto com alguns, enquanto outra metade da classe incentivava, aos gritos, aquelas torturas.
A minha professora avisava, gritando, que aquilo deveria nos servir de exemplo. Diante de tamanha coação, ficávamos imóveis nas carteiras.
_ E aí “Pimentão”, apanhou hoje, hein!
Ouvi isso na saída. Um grupo de colegas de classe zoava o “Pimentão”, porque ele havia apanhado, dentro da classe, da professora, cujo nome não citarei, porque ela ainda vive.
Ele ficava vermelho, igual a um pimentão mesmo, quando o irritavam. Por isso, herdou o apelido. E o constrangimento o acompanhava até que findasse o seu caminho de retorno à casa, talvez deixasse a vergonha do lado de fora, quando a adentrasse, batendo a porta. Talvez...
No dia seguinte a rotina era a mesma, os encontros acontecendo e aquele menino, apenas “Pimentão”, animando a garotada. Eu gostava da alegria dele, embora não soubesse o seu nome. Apenas uma criança simples. Apenas.
Naquela saída eu o vi mais vermelho do que antes. Os “amigos” o chacotearam. Falavam de outra surra que levou da professora porque era ‘burro’, não decorara a tabuada. Engraçado! Não ouvimos os gritos do alegre “Pimentão”. Apanhara em silêncio desta vez?
Nunca mais o vi. Não havia mais o “Pimentão” naquela leva que se juntava à outra. Não sei para onde ele foi. O ano, tenho certeza, ele não terminou naquela escola. Desvencilhou-se aquele “Pimentão” da rotina escolar.
Acovardou-se ou teve coragem de fugir de si mesmo por terem lhe roubado a sua autoestima, a sua alegria simples de apenas ser o que realmente era?
Com variedades, os pimentões são ligeiramente picantes. Alguns dizem que quando os comem, lembram-se deles o dia todo. Cada um os digere conforme o funcionamento do seu organismo, por isso uns os saboreiam; outros, não.
O pimentão, enquanto uma hortaliça, meu organismo o aceita muito bem. Mas os meus sentidos, convertidos em impulsos elétricos e que transitam o meu Sistema Nervoso Central, me fazem ouvir os sabores daquele “Pimentão” que gritava aos olhos de tantos e que nada faziam para amenizar o seu flagelo, a sua angústia, a sua vergonha, a sua humilhação. As dores daquele menino eu ainda as vejo, eu ainda as ouço, mas eu não as digiro.
imagem:worldwidephotos.org.
2 comentários:
”Disse a flor para o pequeno príncipe: é preciso que eu suporte duas ou três larvas, se quiser conhecer as borboletas.”
( Antoine de Saint-Exupéry )
Olá Rita,
Blog de conteúdo excelente!
Abraços poéticos do Zé.
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