Texto classificado para a 20ª edição da Revista Inversos, em homenagem a escritora Conceição Evaristo. Tema: A situação do afrodescendente no Brasil
Para
pagar o que não devo.
Só porque nasci de colorido, pelo Criador
usufruído, jogaram-me em uma arena para pagar o que não devo. De joelhos, abri um sorriso e estendi minha
mão para um breve cumprimento. O meu gesto não lhes serviu de moeda; um golpe
me foi dado levando-me ao chão. Não havia, ali, nenhum recurso que amortecesse a
minha queda.
Todo o apoio que busquei na força
dos meus braços, colocou-me, novamente, de joelhos. Vi aquele espaço cercado
com lanças, chibatas e faces mil. Outro golpe eu levei e, lambida por um relho,
minhas pernas alguém abriu.
Não quero que me batam para pagar o
que não devo por ter cor exuberante: troféu de um Império. Meu sorriso
enlargueci. Por esse vitupério, o branco dos meus dentes avermelhou-se num
instante com o beijo da corrente. As
gotas tão pungentes arrancavam os aplausos de mãos alvas e estridentes.
Não quero que me batam para pagar o
que não devo e, recompondo-me, corri para o encontro, quis saudar meu cobrador quando,
separando-nos, uma lança atravessou-me e novamente eu caí. Arrastei-me até o
tronco e, ali, entre os senhores, me apoiei. Num impulso, não sei de onde, para
o centro dos horrores retornei. Enchi meus pulmões, acelerei meu coração, nele
me agarrei.
Não quero que me batam para pagar o
que não devo. A lança até doía um pouco no meu peito. Com a mão esquerda me estancava,
com a direita acenava. Senti nos meus punhos o peso
de várias leis. Logo os abaixei para suportar os rompimentos das articulações. Como
modelo de tantos iguais, fui grafada, várias vezes, pelo ferro dos grilhões.
Não quero que me batam para pagar o
que não devo e, quase decomposta, sobre o ombro, experimentei tão forte clava. Muitos
olhos viram, muita gente me enxotava. No
que eu virei o rosto a navalha eu senti. Quanto mais eu resistia, muito mais o
tal feitor suas empreitadas renovava. Pro seu senhor minhas crias eu pari, para
os filhos das sinhás o meu leite eu verti.
Nesses engenhos de torturas minhas feridas, com sal e fogo, eram
temperadas.
Não quero que me batam e por isso me
firmei no apoio dos meus pés. Sem muita demora uma intervenção mutilou-me um
membro inferior. Aquietei-me para não lhes ser importuna. Não via o que se
passava e meu olho foi vazado, também não sei dizer quem lesou minha coluna.
Não quero que me batam e entendi que
deveria deitar-me naquela hora. Não sei para onde foi a lança, já não a sinto
mais em meu peito, já não sinto nada, nem uma algema. A parte do rosto lateja
um pouco. Uma escarificação. Só isso! Sem problema! Só que não! Minha
existência, para os senhores, era a penhora. A par de suas vilezas, espremida no
lagar, descobriram que havia em mim muitas vidas para matar.
Uma voz, tênue e mansa, eu ouvi se
aproximando, ordenando que parasse, naquele dia, a cobrança que forja e fere. Seria o “Senhor Deus dos desgraçados” aquele que
veio “da tribo dos homens nus... hoje míseros escravos” apagar tantos borrões do
manto da minha pele?
A abolição não foi nosso
conformismo. Nesta Nação, por nós alimentada, seguimos vítimas de
invisibilidade, de preconceitos, de exclusões, de racismo. Não quero que me
batam para pagar o que não devo e a todo instante vou lutando, para que não se
esqueçam dos meus irmãos a dor. Vivemos com
corpo, com alma e com a voz do nosso povo na História, como exemplo de dívida
do nosso Criador, que estava livre, no momento da criação, para usufruir da nossa
cor.
Autoria- Rita de Cássia Zuim Lavoyer. Cidade
de Araçatuba – SP.
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