Não foi a primeira vez
Autora – Rita de Cássia Zuim
Lavoyer
Joana jamais fora convidada para encontros
com amigos. Tinha noção das suas condições e dos empecilhos que lhe
dificultavam uma vida social digna. Um dia, Rodrigo, no pátio da escola,
virou-se para ela sorrindo distraidamente. Foi aquele sorriso encantador dele que
a desestruturou. Sorriso que ela tomou para si.
Foi o primeiro amor que sentiu e o imaginou eterno. Idealizou carinho.
Sonhava um encontro com o seu pretendente. Ele mais jovem e Joana já era “de
maior”, mas estavam na mesma classe porque ela havia reprovado um ano e
desistido dois por conta do bullying que sofria.
Meses tentando um contato, arquitetando
pretextos para estar perto do mocinho. Ele não a percebida. O jovem não era
grande coisa, mas na balança das necessidades ele lhe apetecia as esperanças de
ser tocada, quiçá beijada. Passou a
forçar encontros. Foi perdendo a timidez, chegando mais perto, puxando conversa
e arrumando um meio de, pelo menos, seus braços se tocarem, quando estavam
próximos.
Um dia seu esforço não foi em vão. Não foi
fácil, pois sabia que ele não a queria. Ele riu, combinou algo com ela e foi, gargalhando,
contar para os colegas.
Joana desejou-se atraente para o primeiro
encontro marcado, embora desconfiasse que Rodrigo não iria. Arriscaria, mesmo
sua voz interior infernizando-lhe a cabeça com a afirmativa: “Deixe de ser
idiota! Ele não vai!”
Com a roupa não se importava. Ia com a
mesma que sempre usava, parte integrante do seu corpo. Não possuía nada em sua
casa que melhorasse sua aparência, seu cheiro. Somente o sabão dividido com o
tanque e a pia da cozinha.
Alucinada pelo desejo de ser querida, almejando
seus cabelos e seu cheiro melhorados, entrou em uma farmácia. Antes de o primeiro encontro acontecer, foi
presa por roubar um frasco de xampu e um sabonete. Com os corretivos que
recebeu na cadeia “para aprender a virar gente”, conforme dizia quem a
acoitava, perdeu um olho. Libertaram-na, tempo depois, meio cega para a vida.
Saiu da prisão sonhando com aquele
primeiro encontro. Não tinha certeza de que o rapaz havia comparecido, na
ocasião, no local e hora marados, porém acreditava que suas possibilidades com
ele, após a prisão, eram nenhuma.
Para os pais, Joana tornou-se pesadelo.
Pobres, juraram não serem ladrões e não admitiam uma ladra dentro de casa.
Expulsa do pedaço de teto que a abrigava, abandonada, a vida fechou-se para
ela, misturando-lhe os sentimentos. E, cega de ódio, amou ainda mais.
A cada amor experimentado em troca de
abrigo e de comida, seu ventre se avolumava. E amava cada volume como se fosse
o primeiro. Já estava com cinco filhos que ela sustentava sozinha, dando seus
pulos.
A fraqueza física que desenvolvia em razão
das necessidades que passava tornou-se companheira da sua cegueira, mas não
alterou sua audição. Ouviu que um hipermercado da cidade doaria os ossos à
população após a desossa das partes dos bois que chegavam para abastecer o
açougue. A notícia atingiu-lhe o
estômago. Armada de sacolas plásticas e de suas crianças, rumou àquele destino.
A fila de famintos para conseguir uma
faísca de osso era imensa. A voracidade dos braços para agarrar aquele alimento
não possibilitou que Joana se aproximasse do seu desejo. Quando chegou sua vez
já não havia nem o cheiro do que supôs alimento para a janta.
Acomodou seus pequenos em um canto,
deu-lhes recomendações e entrou no hipermercado. Voltaria com comida – disse-lhes. Não
retornou. Os cinco menores foram recolhidos. Contataram os avós que os
acolheram com carinho. “Estarão protegidos” – alguém
os acalmava – , enquanto a mãe seguia presa pelo
roubo de uma bandeja de carne, que sonhou para a janta das crianças.
Apesar de defensores da acusada alegarem
que ela estava na fila com os filhos para conseguir os ossos descartados, e que
nada conseguira para comer, argumentando sobre a “ilegalidade de prisão para
quem rouba para matar a fome”, a Juíza da causa, uma mulher de aparência
distinta e faminta de justiça, apoiada no primeiro histórico da acusada,
justificou sua prisão: “Não foi a primeira vez!” e a lembrança daquela primeira
vez sobre o xampu e o sabonete surrou a alma da Joana com mais força do que
antes.
Na sua segunda clausura, aquela mulher de
pele e osso, com os sentimentos rasgados para “aprender a virar gente”, sentiu
vontade de ser gente de verdade. Trocando experiências com as companheiras de
cela, foi amadurecendo as ideias para entender qual o significado de “gente”. Chorava
pelos filhos e decidiu que se esforçaria para ser “alguma coisa”.
Libertaram-na. Agora, sabendo de muitas coisas, voltou para
rua com outras visões. Mas antes queria se produzir, ficar atraente para os
filhos. Queria tê-los novamente em seus braços, acariciá-los. Como gente, investiria
em algo significativo, profissional, sem erros, tudo pelos filhos, seus amores
eternos. Estava certa de que os seus trabalhos não seriam amadores como o da
segunda vez, tampouco como o da primeira.
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