IN VINO VERITAS
conto de Rita Lavoyer classificado no 35º concurso de contos de Araçatuba
IN VINO VERITAS
Rita de Cássia Zuim Lavoyer
– Merlot, minha neta, vendo-a tão linda, uma Enóloga formada, sinto que valeu o sacrifício da distância e da saudade que amarguei, sozinha. Agora que voltou das viagens pelo mundo, com cultura à altura do seu património, conhecerá a herança que administrará e a história de suas ancestrais. Foram: Syrah que gerou Sauvignon, que gerou a mim, Tannat. Eu gerei sua mãe Malbec.
A casa onde Tannat recepciona a neta é de arquitetura antiga. Na sala, há penduradas gaiolas com melros-pretos que, segundo a proprietária, representam paz, boa sorte e vida eterna. Vinhos, castanhas, azeites, pães, queijos e assados enfeitam enorme mesa, aromatizando o ambiente.
– Merlot, vou lhe contar a história que me era narrada por mamãe Sauvignon. Syrah, conforme ouvia, era jovem e trazia os cabelos em coque frouxo, do qual escapavam caracóis sedutores em sua nuca tenra e aveludada. Usava profundo decote, expositor de fartos seios que evocavam voluptuosas nádegas. Vez ou outra experimentava rápido descanso à beira do córrego que abastecia a propriedade. Sóbrias mangas compridas, que contrastavam com sua imagem natural, ocultavam as profundas cicatrizes que trazia nos braços e os protegiam de picadas de bichos peçonhentos que, porventura, se escondiam entre os ramos das videiras, de onde pendiam deslumbrantes cachos de cor roxo-azulada que brilhavam grávidos de suco. A espécie era rara e resistente. Deflagrava a cobiça de viticultores da região, levando-os a oferecer valores significativos para conseguirem uma muda daquela preciosidade. Imune a investidas de concorrentes pouco éticos, a cultura seguia sob os cuidados de seu único plantador, despertando inveja, por não saberem qual ciência, ou mesmo milagre, a fazia tão formidável. Syrah fazia a colheita e o dono da vinha a transformava em vinhos tintos únicos, com notas diferenciadas, textura sedosa, aroma perfumado e tanino persistente. Algumas vezes, a brindava com cálices da melhor safra, que descansava em tonéis de carvalho de sua pequena, porém famosa, vinícola. Quanto mais ela se esforçava em sua vindima, as uvas, como magia, cacheavam exuberantes, e seu trabalho parecia não ter fim. Ali havia a casa do dono da vinha, e junto a ela modestas acomodações para a colhedeira, que não descortinava o mundo a sua volta. A vida corria plácida e monótona. Estando a moça em seu labor, um viajante, risonho e imberbe, de olhos roxo-azulados, com camisa aberta no peito, calça dobrada até os joelhos, montado em um cavalo, avistou as uvas por cima do muro que protegia o vinhedo. Olhou, cobiçando-as. Sua boca encheu-se d’água! A colhedeira sentiu que ele trazia sede e fome no olhar, mas não lhe deu sequer uma uva, apenas um olhar severo. Ele seguiu na cavalgada, deixando em cada fruta o brilho do seu desejo. No horário em que o senhor da propriedade, montado em seu cavalo Dionísio, saiu para comercializar seu produto, o jovem cavaleiro voltou munido de uma flauta doce e de um cântaro transbordando vinho. Pôs-se diante do muro a avistar aquela beleza esticando os braços, para alcançar os cachos do alto e os colocar cuidadosamente em uma cesta de palha. Conforme levantava os braços, suspendiam juntos o avental e a saia comprida, possibilitando ao cavaleiro ver a composição daqueles pés descalços que, majestosos, erguiam-se para desenhar as panturrilhas com a exata forma como ele as imaginava. Tocava sua flauta para a moça ouvir. Ambos se viram. Só o muro por testemunha. No colo que a moça expunha, o rapaz embebedou-se de sonhos. Apeou, adentrou a propriedade alheia e serviu-lhe o vinho. Ela o bebeu como se nunca experimentara outro. Inebriada, ela acreditou no que ecoou em sua mente: “ama-o”. Nus, não se envergonharam de suas intimidades. Ela o provou, satisfazendo a fome que sentia por ele. Ele sentiu nela sabor frutado e aroma de especiarias.
Caída em sono profundo, Syrah não o viu partir. Acordou coberta com suas vestes. Queimava-lhe a mão direita. Decifrou: fora picada por bicho peçonhento. Não temeu por isso, mas sentia frio. Seria inverno? Seria inferno? À noite, delírios febris da moça alarmaram Dionísio, que relinchou, despertando seu senhor, que adentrou o cômodo onde ela se debatia e se apressou em acudi-la. O homem acendeu o fogo, amassou ervas, com o emplastro besuntou-lhe a mão, fez chá, serviu-a, usou o ferrete em brasa e, em seguida, guardou-o atrás da porta, apagou o lampião e retirou-se, deixando-a só, em seu quartinho, ao lado do estábulo, junto ao forno a lenha. Ali, o pão era preparado pelo proprietário que cultivava e colhia o necessário para se alimentarem.
A colhedeira demorou para acordar, porém disposta, não se dando conta do servilismo a que era submetida, apressou-se para colher os cachos já maduros e não se deixar perder o esforço e o investimento ali depositados. Grata aos cuidados do senhor da vinha, duplicou suas forças e, na lida, colhia cada vez mais. Ela passou a trazer para a colheita duas cestas: uma já usada e outra cuidadosamente trançada por ela, para outra ocasião. Com os pequenos braços, abraçava a nova cesta que, além das uvas, abrigava uma ânfora cheia de vinho, que ela subtraía do seu senhor para beber enquanto trabalhava. Sobre o muro espreitava a vinda do viajante. Ele se achegava tocando sua flauta. Ela tão bacante, ele, tão amante, sob as videiras, embriagados de amor, saciaram-se. Um dia ele não veio! Sobrevieram tardes, noites, manhãs e a ausência se repetia. Sonhadora, enfiava-se na cama e, sem pregar os olhos, reparava a feiura de seu quartinho apoiado com madeiras carcomidas, vendo as madrugadas crescerem. Sentiu que isso não era bom. Dionísio espionava-lhe a insônia. Desesperou-se, mas o aguardava sobre o muro sem esmorecer. De esperá-lo abraçada à cesta, com força e com a raiva que lhe corria no corpo, seus braços se debilitavam. Já não podia erguê-los com a desenvoltura de outrora para alcançar os cachos mais altos. Falhava! O viticultor, compadecido com o estado da ajudante, dispensou-a do trabalho por uns dias. Para facilitar-lhe o alcance dos mais altos cachos, aterrou o terreno, diminuindo a distância entre as uvas e o solo. Ele cuidava das uvas, competia a ela colhê-las. A moça não percebeu que a terra fora removida do lado de fora do muro da propriedade.
Syrah descobriu – sonho, delírio ou premonição? – que o viajante se desviava de seu caminho e pressentiu que ele retornaria. Entorpecida pela saudade, encheu sua ânfora com vinho e a cesta com cachos para esparramá-los por onde o jovem passaria. Abriu o portão e, ao sair, deu-se conta da quantidade de terra que, dali, fora removida. Olhou para cima e notou que o simples muro que fitava do lado de dentro, observado pelo lado de fora, transformara-se em muralha. Constatou que, ao transeunte, aquele caminho rebaixado não permitiria visualizar o interior da propriedade. Jogou sua vista ao longe, não havia uma mísera casa. Quis lembrar-se de onde viera, de quem nascera e a partir de qual desejo fora gerada. Naquele universo vazio, que competia àquele proprietário, temeu não achar sua identidade. Sem analisar a cena, correu e despejou as uvas no caminho em que, presumiu, o viajante passaria. Não era o bastante para forrar aquela passagem, mas o suficiente para atrai-lo. Avistou algo desfocado ao longe, talvez ele. Esperou. De repente, a figura tomou forma e se fez presença. Percebeu o cavaleiro com alguém na garupa. Correu para casa e pôs-se sobre o muro, ignorando o abismo que estava do lado de fora, na esperança de tê-lo diante de seus olhos. Pensou: “Lá de baixo poderá me ver?” Bebia do vinho como quem necessitava ingerir rapidamente a vida. Viu-o se achegando com uma bela moça, que segurava uma cesta cheia de uvas – as suas! Daquela altura, os avistou e a queda de Syrah, embriagada de rejeição, foi inevitável. No chão, do lado de fora da muralha, viu o casal seguir em marcha cadenciada. O olhar dela os seguiu até desaparecerem. Com os braços quebrados, gemendo de dor, foi acolhida pelo seu senhor. Ele amenizou-lhe o sofrimento, mas não cuidou das fraturas. Passou o tempo, os braços dela não se recuperaram. Enfim, a angústia causada pelo desprezo do viajante ainda se avolumava dentro dela. Sentiu-se fragilizada. Conhecera a inveja, o ciúme e a sua desvalia. As alturas já não lhe eram possíveis. Aquele senhor não comercializava mais o seu produto. Ele preparava-lhe os pratos de refeições, mas competia a Syrah levá-las à boca. O senhor esperou que as uvas secassem nas parreiras. Colheu-as secas e as guardou. O vinhedo, cortou e queimou. Assistia aquela agonia crescer próxima aos seus olhos. Percebeu-se ladeada pelas labaredas dentro das quais se viu queimando. Sentiu frio e indagou:
– Por que fazes isto? Tuas vinhas já estavam estabelecidas. Sacrificas o teu bem, o único?!
Ele era de poucas palavras e de nenhuma explicação.
– Menina, quando adquiri esta terra, puro elemento árido e sem forma alguma, ela estava completamente vazia. Assustei-me com o abismo que a cobria, mas dela não desisti e plantei aqui minhas certezas, crente de que eu a fertilizaria, colhendo frutos em abundância e de qualidade original, para oferecer a quem fosse merecedor. Vi que isto era bom.
– Se o parreiral que te proporcionou ótimo vinho foi o resultado da tua fé e do teu trabalho, por que o destruíste sem guardar das parreiras uma muda, para vendê-la aos outros plantadores interessados? Achas justo fazeres com teu parreiral o que desejas a alguém? A quem queres castigar?
– Desta plantação não conhecerão a origem. O que sabes, menina, sobre o que é justo?
– Sei pouco, quase nada pude aprender observando somente as belezas das uvas. Mas sei que depois de esmagadas por teus pés, liberam suco de qualidade sem igual. Sei que em teus pés há o poder de transformar a beleza intocável das uvas em vinhos que estonteiam e dão prazer. Conhecia poucas coisas, recentemente descobri novas realidades, mas ainda sendo poucas, pouco há para julgá-las. Porém, posso afirmar-te, meu senhor, que os frutos das tuas parreiras eram muito bons.
– Nunca me disseste nada sobre o vinho. O que sentias?
– O cálice de vinho era a moeda com a qual me pagavas. Sentia prazer renovado a cada gole.
– Renovado? Sentiste sede, frio ou fome alguma vez?
– Sim! As necessidades, senhor, nos chegam em proporções diferenciadas. Era eu quem te punha a mesa, agradeço-te por me permitires um prato e por me ofereceres a proteção do teu teto, única casa que conheci. Estendeste-me teus braços paternos quando, desabrigada, me encontraste sem jeito e sem forma. Modelaste-me com teus cuidados – como um sopro de vida –, para me pôr até aqui, feito imagem de ser vivo. Vi isso acontecer em mim, sob teu abrigo, e achei bom, meu senhor.
– Fiz o que devia. Não a queria órfã. Por estares com os braços inválidos terás a mim, se quiseres. Entendas, foi o vinho a causa da tua queda, por isso cortei o mal pela raiz.
Nada fora dito, tampouco ouvido, naquele momento. Ele furou um poço. Com a terra retirada vinham ossadas. Syrah, mergulhada em sua desdita, pôs-se a observar as ossadas misturadas à terra. Lembrou-se das palavras lidas pelo senhor: “Maldito o humano que no humano confia”. Em cada parte ali estabelecida, sentiu-se toda. Havia histórias ali. O muro também foi derrubado e nada construído em seu lugar. A casa, cercada de pequena plantação, foi inundada pelo silêncio entre os dois. A água do poço, de pura qualidade, era difícil de ser apanhada. Retirá-la carecia de braços firmes para içar o balde que voltava cheio. A fim de amenizar a tragédia da moça, o senhor mitiga-lhe a sede com um cálice de água, regando-lhe delicadamente os lábios, e a nutre com migalhas de pão recheado com passas. Enquanto a alimenta, ele a distrai lendo-lhe parábolas de um livro que tem o paraíso e o inferno como cenário, onde a morte e a vida eterna são resultados das lutas entre anjos e demônios que testam, entre o bem e o mal, as forças das tentações espalhadas pelos olhos do prazer.
Certo dia, sentindo-se solitária e sem o muro por obstáculo, ela viu, montado em seu cavalo, aquele moço ainda imberbe, adentrando o terreno. Aproximou-se, ofereceu a ela seu cântaro de vinho. Sem condições de pegá-lo, foi servida. Dividiram o recipiente, registrando nele as marcas de seus lábios. Do vinho secaram até a última gota. Com aquele endeusado, aquela mortal teve novos aprendizados. Como as flores de uma videira, ela estava disposta à fertilização. Embriagaram-se. Syrah pôde sentir novamente o sabor e o calor daquela figura que ela amava por intermédio do vinho. Nela, ele deixou seu mosto. Escondido, o senhor assistia com piedade àquele casal, mas seu ódio foi despertado quando viu o flautista apanhar água do seu poço para se banharem.
Embevecida, deixou aquela divindade colocá-la na garupa de seu cavalo, distanciando-se daquele terreno. Sem poder agarrar-se ao cavaleiro, desequilibrou-se naquele cavalgar, sofreu outra queda. No chão, implorando e sem ter recebido socorro do cavaleiro, ela o viu seguir sem virar-se para trás. Não gritou de dor pela fratura em uma das pernas. Tragava o conteúdo do cálice que somente ela deveria beber. Constatou: não era inverno.
O senhorio, novamente, a ajudou. Curou-lhe a dor, não a fratura. Controlava-lhe os ciclos e, por precaução, desta vez, não lhe serviu chá. Leu para ela passagens do livro, apagou o fogo, acomodou o ferrete atrás da porta do quarto da vitimada e saiu. Ociosa, agarrada à fraternidade do tempo, processou os pensamentos a que fora tentada. Syrah lembrou-se das palavras que lhe foram plantadas no coração. Desejou dar aparência de liberdade às que apreendera, confiando nelas. Meses depois, quando pôde, saiu do quarto arrastando uma das pernas. Viu seu senhor, ao lado de uma fogueira, preparando-se para tapar o poço. Anunciou:
– Sairei, meu senhor, de tua propriedade. Quais problemas te apresenta o poço? Não o tapes, sentirás sede! Mais alguém necessitará de tua água. Por que preparas esta fogueira?
– Foi o vinho a causa da tua queda e, como ele, poço também é abismo! Há outros de rasa significância que nos servirão, deste não beberemos mais. Este infortúnio não voltará a acontecer em minha terra. Lembra-te, menina, aqui, nada será obtido sem respeito e sem o suor do trabalho.
– Por esta razão sairei, senhor! Ensinaste-me sobre minhas regras, sei o que se passa comigo. Já não posso mais te ser útil.
– Podes! É só obedecer! Não tens preparo para enfrentar perigos. Que ganharás partindo?
– Nada, tudo, talvez uma vida e uma história.
– Fica, já és uma videira! Poderás mudar o rumo da tua história! Aqui é o paraíso, comparado à selva que te espera!
– Não pretendo paraíso! A que história referes?! Conheço apenas aquelas que lias para mim.
– Tramarão contra vós! Conhecereis a fome, a doença. Sereis meus herdeiros, tu e teu filho. Nada vos faltará! Serás exemplo de mulher. Vestirás roupas e sandálias novas. Colocarei anel no teu dedo – ele gritava. Serás a minha filha pródiga que voltou. Conhecerás uma festa. Nela, oferecerei o melhor dos meus vinhos aos convidados. Esta terra é fértil, já nos brota nova vinha e nenhum de nós terá palavras condenatórias um para com o outro. Ainda tenho reserva em nossos barris. São nossos. O vinho comedido nos limpará as chagas! Deixa que te enxague a boca com um pouco de vinho.
– Não pretendo os teus bens, muito menos ser exemplo de mulher, senhor. Levo comigo, como herança, tuas palavras, aquelas que lias para mim e por que sou bastante grata. Elas me serão escudo.
O tanino nas palavras da mulher fez secar a boca daquele senhor. Arrastando-se, Syrah não olhou para trás. Enquanto ela partia, ele jogou o livro no fogo. Ali, fez queimar os ossos de outras que manteve quando sua plantação ainda se formava, que também conheceram o abismo, mas não resistiram a primeira queda. O senhor chorou sobre os seus tonéis. Acariciou Dionísio, pronunciou-lhe palavras, beijou-o e o libertou. O cavalo saiu da propriedade e seguiu os passos de Syrah.
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– Essa é a história dessas mulheres fortes, mas que morreram jovens. Não lhe faltará tempo para investigar as causas. Quando o fizer, tome antes uma garrafa de vinho e acredite em seu poder.
– Deseja que eu acredite nesse absurdo? Trouxe-me aqui para ouvir suas fantasias? Soube por seus serviçais que não para de adquirir vinhos e que vive embriagada.
– Merlot, essa história era contada por mamãe, Sauvignon. Ouvira do flautista, que visava manter viva a saga de Syrah. Logo que ela deixou a propriedade daquele senhor, teve o bebê, foi capturada e abandonada pelo senhor, que levou sua filha, batizada por Sauvignon. Ela não resistiu ao abandono do cavaleiro e à distância da bebê e aos poucos secou. Sauvignon, que fora criada nos mesmos moldes de Syrah, engravidou também, e eu nasci. Nessa ocasião, aquele algoz já havia falecido, antes passara a propriedade à Sauvignon, como prometera à Syrah, quando ela partiu: “Sereis meus herdeiros, tu e teu filho”. Syrah foi nossa ancestral, mas não herdeira. A primeira foi a filha dela, Sauvignon, depois eu, Malbec e você. Malbec, minha filha, não aproveitou a herança, porque o controle de tudo ainda estava em minhas mãos. Não herdou nada!
– Percebo que se altera quando relata sobre a morte de mamãe. Sinto um misto de raiva e satisfação na sua voz quando afirma “Não herdou nada!”. Acredito que ela fugiu das suas garras!
– Malbec era um ser muito real, de alta complexidade. Sua mãe tinha uma intensidade incomum. Quis repetir a saga de Syrah e tornar-se misteriosa também. Fugiu e morreu no seu parto.
–É mesmo? E Syrah saiu de onde? E por que esse “senhor” tinha poder sobre ela?
– Não seja tão ácida, meu melro-preto! Malbec imaginava o que não via. Era sedutora e trazia os mesmos traços de Syrah, um ser encantado envolto em mistérios e lendas. Repito: após conhecer o flautista as mãos de Syrah tornaram-se férteis, os cachos das uvas multiplicavam-se quando ela os tocava. Mas o seu senhor, para castigá-la, queimou todo o vinhedo. Recomeçou novo plantio após aparecer com Sauvignon, a filha de Syrah, nos braços. Quanto mais a bebê chorava, mais ele plantava. Sua mãe Malbec conhecia essa história de Syrah, eu lhe contava, contava e ela ficava vislumbrada.
– Ela acreditava? E as ossadas, de quem eram? Foi “aquele senhor” quem as matou?
– Ah, as ossadas? Certamente não eram de boa casta. Quanto a “aquele senhor” matar alguém, não sei lhe dizer. Sei que o suor do trabalho de quem o servia era ouro para ele. As lágrimas também.
– Vovó, então quem foi o pai de cada uma de vocês? E o meu? Como “aquele senhor” morreu? – In vino veritas, Mertot! Encha nossas taças. Um pouco de fantasia não faz mal a ninguém. Nossas ancestrais sabiam disso. O vinho nos remete às verdades e ao perdão, beba-o sem moderação.
– Falar sobre uvas e vinhos a transforma, não é? A senhora conheceu o tocador de flauta?
– Todas o conhecemos, Merlot. Um ser misterioso que se renova a cada chegada. Uma entidade que só se apresenta quando o conjunto de todo o trabalho, desde a colheita à produção do vinho, está em perfeita harmonia. Quando esta fusão acontece, ele aparece. Foi ele quem me batizou por Tannat. Somos mulheres elegantes, complexas, de marcantes personalidades e de qualidade original. De castas raríssimas, Merlot! Ele teve influências sobre nós. In vino veritas, minha querida. E o melhor vinho é aquele que toca o coração. Ele tocou os nossos. Seja leve e permita-se também.
– E mamãe, por que viveu tão pouco? Onde a encontrou para trazer-me em seus braços.
– Não foi no paraíso, acredite. Malbec era intensa, não sabendo distinguir entre o bem e o mal, apaixonou-se loucamente. Em uma ocasião, estávamos, sua mãe Malbec e eu, no vinhedo, bebíamos e dançávamos. Sua mãe estava alegre, parecia alucinada e ele passou montado em seu cavalo. Eu a alertei sobre ele. Porém, um dia, ela estando sozinha, ele chegou com sua flauta melodiosa e com o mesmo cântaro de outrora. Não demorou, sua mãe Malbec engravidou e fugiu. Entre nós foi a mais encorpada, mas morreu assim que você nasceu. Você ainda cheirava a mosto quando eu a encontrei e a trouxe para mim. Não se esquece “uma Malbec” com facilidade. Esta plantação lhe pertence, conserve-a. Lidar, gostar e falar sobre vinhos não é para os fracos. Você tem poder de se sobressair entre todas nós e o dever de descobrir, na escala de nossa intensidade, quem, de verdade, é a mais intensa, robusta, encorpada. Com sua doçura saberá harmonizar futuros contratempos.
– Por que a propriedade foi doada para Sauvignon? Como “aquele senhor” morreu?
– O senhor das vinhas determinou em seu testamento que a propriedade não poderia ser vendida, jamais, e que seus herdeiros seriam os descendentes de Syrah. Deixou atribuído aos herdeiros o compromisso de cuidar de Dionísio, o cavalo que lhe fora fiel, e suas futuras proles.
Tannat virou sua taça de vinho, disse – Merlot, não pense que os impérios são construídos apenas com o suor do trabalho. “Aquele senhor” era um carrasco; o flautista, uma entidade visionária e alegre que entendia da natureza, da fertilidade, do vinho. Erguemos este império, trouxemos o progresso. Transformamos esta região no terroir perfeito para plantação de todos os tipos de uva. Mamãe Sauvignon, a Cabernet Sauvignon, disse-me que o flautista o matou.
– Ele o matou?! Vovó, a senhora é uma bêbada mentirosa! Se lhe perguntar da minha vida conseguirá responder com dignidade sobre minha existência? O excesso de vinho já lhe consumiu todo o fígado, agora o cérebro! Somente agora me diz que ele o matou? Todas nós somos filhas dele?
– Merlot, para sua segurança, eu a mantive longe deste mundo. Proporcionei-lhe conhecer todos os continentes, ter os melhores estudos e contatos com culturas diferentes para que desenvolvesse novos olhares sobre a vida e a interpretasse melhor. Foi privilegiada por não conhecer o carrasco, tampouco o flautista. Agora é uma mulher feita, de beleza vibrante com condições para vasculhar a sua história e encontrar respostas às suas perguntas. Termina aqui a minha história.
Só, na vinha, observando seu patrimônio, Merlot geria sua herança, premeditava, saboreando castanhas, azeites, pães, queijos e assados, secando os vinhos das ânforas que lhe foram apresentadas como sendo de Syrah. Sob efeitos da bebida, viu adentrando sua propriedade um senhor de olhos roxo-azulados com camisa aberta no peito, calça dobrada até os joelhos, montado em um cavalo e, na garupa, uma mulher robusta, de cor intensa e grande concentração no semblante. Ambos apearam. Ela trazia uma cesta de palha cheia de uvas; ele, um livro e um cântaro.
– Merlot, eis aqui Malbec, tua mãe, e este cavalo é Dionísio. Tannat, tua avó, sabia que um dia te traríamos um. Precisas conhecer a história sobre o senhor desta vinha e sobre tuas ancestrais.
Merlot assustou-se com a palavra “mãe” e com as profundas cicatrizes nos braços de Malbec. Embevecidas, havia força no olhar de uma, doçura no da outra; no do homem, sede e cobiça.
Sob uma nuvem de melros-pretos que experimentavam a liberdade, uma velha que se apresentava por Tannat, com uma taça de vinho na mão, chamava por Sauvignon para beber e ouvir suas histórias. Distante, observava-lhes uma mulher jovem que trazia os cabelos presos em forma de coque, do qual escapavam caracóis sedutores em sua nuca tenra e aveludada. Ela tocava as uvas, dançava e sorria como quem celebrava, pela primeira vez, a verdade e a vida.
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