ANJO DE VERDADE, POEMA CLASSIFICADO PARA COMPOR A COLETÂNEA DE POETAS CONTEMPORÂNEOS, 2025, EDITORA PERSONA.
Anjo de verdade - Rita
de Cássia Zuim Lavoyer
Sorri, com motivos que su’alma desconhece,
chora, sem entender onde sangra o coração.
As lembranças de outrora tornaram-se um eco incessante:
"Fui o menino que ia à escola. Fui o menino que jogava bola."
Recorda-se ainda do "papai" e da "mamãe",
o que de melhor ele faz,
mas a esposa é um rosto que não reconhece mais.
Não interpretando as faces dos filhos, pergunta-lhes quem são.
Alzheimer, o algoz de sua memória, sem compaixão,
transformou-a em seco jardim, com flores em decomposição.
Seus discursos ilusivos e suas incontinências
envoltos em apagões que o consomem,
forram de histórias o solo da sua existência.
Comprometida a sua cognição, suprimida de sua natureza
a beleza, às vezes, é um paciente impaciente,
outras, impaciente apenas, infringindo a própria fortaleza:
derrocada cada vez menos amena.
Sentindo seus tempos se perderem nos descompassos
dos próprios ponteiros, sofre desconfortáveis emoções
e as aflições fazem de su’alma celeiro.
Seus gatilhos, disparados sem querer, tornam vago
o seu olhar angelical. Suas habilidades
escoam como rastilho, num estágio que se torna normal.
Quem um dia foi bússola, confiança, arrimo,
tornou-se náufrago, insegurança, descontrole da nau.
Não o querendo empecilho, tomam-lhe o leme os filhos.
Tendo o pai como parte dos seus propósitos,
com delicadezas para preservarem sua identidade,
contam-lhe os feitos de um menino que ia à escola,
de um menino que jogava bola
e assistem a uma nova criança que ri, que chora
e que vai dormir feliz, dissolvendo na realidade dos sonhos
as memórias do agora.
No silêncio dos seus desarranjos, sem saber
a desarmonia de sua serenidade, nem sabe que anoitece
e que amanhece sendo um anjo de verdade.
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