Achavam-se felizes, mas quando davam para agressão o "pau" quebrava mesmo. As ofensas choviam e não tinha mãe que saísse limpa na história.
Foi sempre assim, desde que se casaram.
_ Você não cozinha como a minha mãe.
E ela aguentava calada para a comida poder passar-lhe pela garganta.
Quando começavam a discutir, o assunto da comida estava sempre no meio. Durante uma das refeições, ele soltou a famosa :
_ Você não cozinha como a minha mãe!
_ Não por isso, querido! Peça à sua mãe que venha até a nossa casa que eu a ensinarei a cozinhar, isso se ela, ainda, tiver condições de aprender alguma coisa. Assim, passaremos a cozinhar do mesmo jeito e nas duas casas sentirá o mesmo sabor.
Irritado com a ironia, o marido armou-se com a faca de mesa e desferiu um golpe mortal no pescoço da mulher. O sangue jorrou sobre a salada de tomates, única mistura sobre a mesa, tornou-se brilhoso sobre o opaco da panela de arroz e enrubesceu o chão.
Ágil em sua ação, o homem misturou o feijão com o arroz e com essa massa tampou a cavidade do pescoço da mulher, tentando estancar-lhe o sangue, mas deixou-a morta no chão. Em poucos minutos os mosquitos começaram a chegar.
O homem correu para a casa da mãe. Cheio de êxtase, matou a velha com o seu amor. Como não viu sangue, correu, foi até a cozinha, apanhou um tomate e esfacelou-o na cara da morta. Ligou para o restaurante, pediu uma marmita, sentou-se no sofá, ligou a TV. Acendeu um cigarro e pôs-se a esperar seu almoço.
DESPONTE
_ Todo homem tem um sabor, venha provar de mim para descobrir qual é o seu gosto – disse o cozinheiro ao seu prato principal.
_ Mas a dor dos meus dissabores parece não ter fim – retrucou a comida.
O cozinheiro fez com que o seu prato principal olhasse ao seu redor, a fim de que se reconhecesse com os objetos ali contidos: fogão, refrigerador, panelas, pratos e talheres. A comida girou em torno de si mesma, ficou zonza e caiu.
Antes que ela acordasse o cozinheiro despiu-a, arrumou-a delicadamente em uma mesa central sobre a qual luzia uma linda toalha de linho. Lambeu-lhe delicadamente o pescoço e, ao primeiro toque dos seus lábios aos lábios dela, sentiu-os ressecados.
_ Devo umidecê-la, amada minha, com os dotes de cujo pote você só faz crescer.
Assim o fez.
Acordada a amada, a comida alimentada, esta, então, o possuiu. Com o seu dote, secou-lhe o pote. Afastou o seu rosto do peito dele e perguntou:
_ O que diz dos meus sabores?
Mas ele, exausto, adormecia. Ela levantou-se, fez uso dos objetos à sua volta. Preparou um suculento caldo.
“Ninguém, tendo-me como prato principal, degusta-me sem dizer dos meus sabores” - ruminava.
A mulher pegou o caldo, ainda fumegante, e o despejou sobre as intimidades do cozinheiro.
Os gritos do homem, sumindo no ar, fizeram arrepiar os pratos e talheres, mas não houve tempo de alcançar o refrigerador. Cozido que estava, cortou-o e o colocou na marmita. Alguém esperava o almoço.
RITA LAVOYER é membro da Cia dos blogueiros
5 comentários:
Caramba, Rita. Nunca um quadro tão surreal na forma espelhou tanto realismo no conteúdo. É a arte fazendo suas tintas a partir do molho de tomate cotidiano. Parabéns!
Da gota serena!
Por causa de um "minha mãe cozinhava" uma assassinato, garfos arrepiando-se e um prato especial na marmita. Demais, Rita.
Carinho
Oi Rita:
Quando o imbecil não casa com a própria mãe dá nisso.
Há uma salada de ciumes com arrependimento temperada pelo sal do poder. É isso: o cara se dá conta que dorme com o inimigo - é, estritamente, a luta pelo poder - no fundo eles se amavam, e nem sabiam...
Tem uns carinhas por ai que quando forem dormir é melhor desligar o botijão de gás....
Minha nossa, agua quente no pepino, não orna.
Obrigado pelas palavras lá no meu blog. Domingo tem cantoria, não esqueça.
Rita, notável! Além da forma que prende do início ao fim, está a menção subliminar do instinto: cansei de ver gato levar cascudo de gata antes e depois... Faltou, quem sabe, ao cozinheiro, a sensibilidade, talento e inteligência próprios dos grandes amantes: brindar o melhor carinho depois e nunca se pôr a roncar feito um asno antes que ela esteja profundamente adormecida... Até por sobrevivência.
Redundante, mas... que crônica saborosa!
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